YANAI impressionava, desde a primeira vista: pele morena e
olhos pretos, a identificarem sua origem indígena, tinha pernas longas e coxas
torneadas (o que para ele era fatal), que apoiavam quadril longo, bunda
levantada (como o “alpha romeo” de
sua juventude) e seios fartos, porém empinados. E, como moldura de marfim,
dentes absolutamente brancos e perfeitos, que se abriram para ele, à porta da
pousada. Viera para descansar, trazendo bagagem pouca – dez peças de roupa, se
tanto – e três livros que pretendia preencherem seu tempo, quando não estivesse
em caminhada. Naquele novembro, pós finados, ele era o único hóspede daquela
pousada, encravada em uma praia: “Pousada
do Adeus”. Achou que havia algo de emblemático no nome. Sua vida, nos últimos
anos, tinha sido sucessão de “adeuses”:
adeus, para amigos que se foram; adeus, para amigos que ficaram e com quem
perdera o prazer de conviver; adeus, para a profissão, pela qual nada mais
sentia; adeus para os filhos que, agora casados, só o procuravam nas datas
oficiais; e, por último, como perda maior, adeus para a mulher, companheira de
toda a vida, que se cansou dele e de suas manias. Sempre se enganou na
etimologia da palavra “adeus”. Se o “a”, aposto à essência do termo,
significa “sem” (como amoral
significa sem moral) adeus só pode significar “sem Deus”. E era assim que ele sentia, quando chegou naquele lugar:
perdera, pela negligência da fé, a companhia de Deus que, por certo, tinha mais
a fazer, do que se envolver com a crise existencial daquele homem insosso e
amargo. Sem Deus, viera buscar na “Pousada
do Adeus” resposta para algumas perguntas. Depois de se instalar (quarto
simples, mas acolhedor, com pequena varanda virada para o mar), saíra para
conhecer o local. Uma enseada de não mais de um quilometro, onde, além da
pousada, havia, se tanto, uma dúzia de casas – todas de alto padrão -,
fechadas, naquela encravada semana de novembro. Entre duas traves mambembes,
alguns nativos idem jogavam bola. Caminhou ao longo da praia e, em uma das extremidades,
descobriu trilha entre as pedras, que o
conduziu a uma mais alta, pequeno pico, que se projetava ao mar. Sentou ali e,
perdido em pensamento nenhum, viu o sol ir, lentamente, mergulhando no mar. Seu
recolhimento foi, abruptamente, interrompido por voz doce que, quase sussurrando, disse-lhe ser
perigoso fazer o caminho de volta, na escuridão da noite. Era Yanai. Sem nada
dizer, ele se levantou e seguiu-a. Ela usava o mesmo short desbotado e a mesma
blusa branca, amarrada à altura do umbigo. Enquanto caminhavam, ela fazia
algumas recomendações e sugestões sobre o lugar, que ele nada ouvia, pois seus
pensamentos acompanhavam o ritmo do andar de Yanai, o balançar de sua bunda e o
jeito gracioso de chapear a água das ondas, que vinha lamber-lhe os pés. O seu
sotaque e a capacidade de concordar o sujeito com o predicado, indicavam que
ela não era nativa. De onde viera? Por que vivia ali? Pensou em fazer-lhe
perguntas, mas não quis quebrar o encanto daquele momento. No jantar, descobriu
não ser o único hóspede: um casal idoso, com sotaque que não identificou,
sentou-se à mesa ao lado e dirigiu-lhe um meigo, mas distante sorriso. Além de
Yanai, a pousada tinha, pelo menos naquela semana, mais dois funcionários: um
gerente, que ficava em sala separada e um cozinheiro. Yanai era um “faz tudo”: recebia os hóspedes, servia a
comida, punha e tirava a mesa e, nas muitas horas vagas, ficava lendo na exígua
portaria. Ao buscar a chave de seu quarto, ele, de soslaio, procurou
identificar o livro que ela estava lendo: “Ficções
do Interlúdio”, de Fernando Pessoa. Ele tinha décadas de Fernando Pessoa,
mas não pôde deixar de se surpreender que mulher jovem, talvez não chegada aos
trinta, pudesse se interessar por poesia e por um poeta que ressuscitara o “spleen” do começo do século XIX. Já na
trigésima página do livro, que começara a ler, percebera estar totalmente
desconcentrado: seus pensamentos teimavam em se fixar em Yanai, em seu jeito
quase juvenil de gesticular, no seu alvo sorriso largo e... nas suas coxas. Apesar
do negrume da noite, resolveu dar uma volta na praia, iluminada, aqui e ali,
por vagalumes e cujo silêncio só era quebrado pelo barulho das ondas. De
repente, teve a impressão, quase certeza, de que passos se aproximavam. Um frio
de medo percorreu-lhe a espinha. Já fora assaltado várias vezes e não suportava
a sensação de impotência que, nessas ocasiões, deixava um gosto amargo em sua
boca. Ali, naquele lugar ermo, poderia ser morto e ficar até o dia seguinte,
para o corpo, já cheirando a decomposição, ser encontrado. A ideia de morrer
não o incomodava. Mas que fosse com estilo: de terno e gravata, infarto
fulminante, em sua mesa de trabalho. Ou, suprema glória, de beca, no Tribunal,
a meio de sustentação oral. Mas ali, naquele lugar afastado, vestindo uma
bermuda velha, tênis gasto e sem meias, sem qualquer documento de identidade,
seria considerado indigente e enterrado num caixão de madeira pobre. Ele, que
sonhava com velório, regado aos uísques, que guardara para a ocasião; um
conjunto tocando suas músicas preferidas. Pensou em correr, mas o medo
grudava-lhe os pés no chão. Preferiu diminuir os passos, sem olhar para trás: o
que tivesse de acontecer, que acontecesse logo. Súbito, uma voz doce, como
gorjeio do pássaro amarelo que, rotineiramente passava em sua varanda,
tirou-lhe do medo e devolveu-lhe à vida. “O
que faz você, andando pela praia, a estas horas?”. Era Yanai, cheirando a
banho e vestindo um vestido, cuja cor não podia precisar, mas livre e solto o
suficiente para mostrar o começo dos seios e das coxas. Ele falou de seu medo,
agora dissipado e ela riu, aquele sorriso largo, que ele já conhecia.
Caminharam juntos até o riacho que margeava a montanha e depois voltaram,
lentamente, em direção à pousada, conversando banalidades, sobre o possível sol
do dia seguinte e a tranquilidade do lugar. Ao subir a escada, que dava acesso
ao interior da casa, ela tropeçou, ele amparou-a pelas mãos. Riram e, por
alguns segundos, ficaram de mãos dadas. Ele sentiu que estava vivendo um grande
perigo. O mesmo perigo de quando, no Arpoador, olhou para V. puxando o biquíni.
Seus olhos se cruzaram e, por dois anos, viveram entre o amor intenso e o ódio
passional. Mas, ali, naquela noite e naquela escada só importava o calor da mão
de Yanai. Convidou-a para conversar mais um pouco e sentaram no sofá de vime da
varanda, com o frescor da brisa, que vinha do mar, batendo em seus rostos. Às
vezes, os cabelos de Yanai teimavam em cobrir o rosto e ela, meigamente, os
afastava, sem interromper a conversa. Fora por cinco anos, professora de
história, em colégios particulares de classe média alta, até que um dia, já
cansada do quase nenhum interesse dos alunos, resolvera abandonar a carreira.
Seus pais morreram em um acidente aéreo, cerda de dois anos, e com o dinheiro do
seguro montara aquela pousada, naquele lugar que conhecera nos tempos de “mochileira”. Uma vez por mês ia à São
Paulo, fazer compras e o barulho da cidade, o trânsito, a neurose das pessoas,
faziam-na voltar correndo para o “Adeus”.
O nome era homenagem à definitiva despedida que dera à vida da cidade grande e
à imensa tristeza, que se apossou dela com a morte de seus pais. Preferiu
receber a indenização que a Companhia Aérea lhe oferecera, a transformar perda
tão dolorosa em um medíocre jogo de interesses. Naquele momento da conversa os
olhos de Yanai foram tomados por lágrimas e ele se aproximou dela e, com
ternura, abraçou-a, enquanto ela pousava a cabeça em seus ombros. Quanto tempo
ficaram assim? O suficiente para que o calor do corpo de Yanai passasse para
seu corpo. Não era calor que tivesse sexo, mas calor que transmitia um carinho
por alguém, que não se via, há séculos. De repente, ela se ergueu num gesto
quase brusco, passou as mãos pelos olhos úmidos, deu-lhe boa noite e se
retirou, apressadamente, para seu quarto. E ele, por um tempo infinito, ficou
ali, sentado, olhando as estrelas e deixando seu pensamento voar, sem pressa e
sem rumo, até que os primeiros clarões da aurora avisaram que era hora de
dormir. Acordou com um sol forte atravessando a janela. Deixou que o jato do
chuveiro o despertasse e de vez; fez a barba, vestiu o calção de banho, a
camiseta com o logotipo da “pulma”,
enfiou o chinelão de dedo, apanhou a sacola com o livro da véspera e o óleo de
praia, e saiu em busca de algum café da manhã. Yanai o esperava com farta mesa
de pão e frutas, mas sem sorriso. Seu semblante demonstrava que ela tivera
noite atormentada por recordações, das quais preferia ter se esquecido. Os
mortos, ao contrário do que diz o poeta, não os conseguimos enterrar. Restam
insepultos e aparecem nos momentos mais inesperados. Respeitou o silêncio de
Yanai, limitando-se a um bom dia. Ela estava linda, apesar dos olhos apagados:
vestia blusa curta, que cobria o biquíni, deixando pedaço de bunda à mostra.
Suas coxas roçavam em seus joelho, quando se curvou para servir-lhe o café. Ele
teve de fazer um esforço sobre humano para que suas mãos não deslizassem sobre
aquele corpo, cheirando à lavanda. Nada se disseram: ela se retirou para a
parte interior do restaurante, e ele se levantou e se dirigiu à praia, notando
que seu membro ia à frente, como a lhe indicar o caminho. Como no dia anterior,
a praia estava vazia. Ao longe, próximo às pedras, onde subira, o casal de
velhos, sentados em cadeiras, parecia trocar inocentes afagos. No lado oposto,
perto da montanha, uns poucos nativos jogavam bola, enquanto um homem,
solitário, brincava nas tímidas ondas. Acomodou-se na cadeira e, após untar seu
corpo com bronzeador, retomou, melhor, recomeçou a leitura de véspera. Desta vez
concentrou-se nos personagens e na trama, interrompidos quando o calor fez
escorrer grossas gotas de suor pelo seu corpo. Entrou, lentamente, no mar,
saltando sobre as ondas, ritual que repetia há décadas: o mar era seu elemento
natural, corpo de mulher que descobre aos poucos, sorvendo cada pedaço, num
ritual mágico. A água morna abraçou-o e o chamou para um mergulho bom e
demorado, como permitia o pouco fôlego, de onde emergiu para contemplar toda a
paisagem. A água salgada escorreu-lhe pela pele ardida e se lembrou de M.,
apaixonada pelo mar, como ele, a dizer-lhe que a água escorrendo sobre a pele,
dava-lhe a mesma extasiante sensação de esperma, percorrendo-lhe o corpo. Mas
ali, naquela praia solitária, mergulhado nas águas de um mar até então desconhecido,
M. era fugaz lembrança, que não demorara a ficar. Como um balé que se finda,
ele, com a mesma calma da vinda, saiu do mar, de volta à areia. Ao levantar a
cabeça, viu alguém sentado, ao lado de sua cadeira. Seu coração bateu forte:
seria ela? Apressou o passo, quase correu: era ela, Yanai, cabeça mergulhada
entre os braços cruzados. “Oi, tudo bem?”
disse ele, quase sussurrando, como se não quisesse interrompê-la de seu
refúgio. Yanai ergueu a cabeça e apenas sorriu, um sorriso doce e calmo. “Oh, desculpe-me por ontem, à noite, não quis
aborrecê-lo com minhas tristezas”. E se levantou, como quem vai partir, sem
nada mais dizer. Ele, no silêncio daquele quase nada, abraçou-a com força,
roçou seus lábios nos cabelos de Yanai e depois, docemente, beijou-lhe o rosto.
Sentiu seu membro, desobediente a seu comando, enrijecer-se e se encostar nas
coxas de Yanai que, ao invés de se afastar, colou seu corpo ao dele. Foi então
que os lábios se buscaram freneticamente, e se beijaram e se morderam como, em
nova versão do Paraíso, estivessem sozinhos no mundo. Sabiam que estava
nascendo uma paixão e, de mãos entrelaçadas, correram para o mar, para
comemorarem aquela descoberta do outro.