sexta-feira, 20 de julho de 2018

O descobrimento


YANAI impressionava, desde a primeira vista: pele morena e olhos pretos, a identificarem sua origem indígena, tinha pernas longas e coxas torneadas (o que para ele era fatal), que apoiavam quadril longo, bunda levantada (como o “alpha romeo” de sua juventude) e seios fartos, porém empinados. E, como moldura de marfim, dentes absolutamente brancos e perfeitos, que se abriram para ele, à porta da pousada. Viera para descansar, trazendo bagagem pouca – dez peças de roupa, se tanto – e três livros que pretendia preencherem seu tempo, quando não estivesse em caminhada. Naquele novembro, pós finados, ele era o único hóspede daquela pousada, encravada em uma praia: “Pousada do Adeus”. Achou que havia algo de emblemático no nome. Sua vida, nos últimos anos, tinha sido sucessão de “adeuses”: adeus, para amigos que se foram; adeus, para amigos que ficaram e com quem perdera o prazer de conviver; adeus, para a profissão, pela qual nada mais sentia; adeus para os filhos que, agora casados, só o procuravam nas datas oficiais; e, por último, como perda maior, adeus para a mulher, companheira de toda a vida, que se cansou dele e de suas manias. Sempre se enganou na etimologia da palavra “adeus”. Se o “a”, aposto à essência do termo, significa “sem” (como amoral significa sem moral) adeus só pode significar “sem Deus”. E era assim que ele sentia, quando chegou naquele lugar: perdera, pela negligência da fé, a companhia de Deus que, por certo, tinha mais a fazer, do que se envolver com a crise existencial daquele homem insosso e amargo. Sem Deus, viera buscar na “Pousada do Adeus” resposta para algumas perguntas. Depois de se instalar (quarto simples, mas acolhedor, com pequena varanda virada para o mar), saíra para conhecer o local. Uma enseada de não mais de um quilometro, onde, além da pousada, havia, se tanto, uma dúzia de casas – todas de alto padrão -, fechadas, naquela encravada semana de novembro. Entre duas traves mambembes, alguns nativos idem jogavam bola. Caminhou ao longo da praia e, em uma das extremidades, descobriu  trilha entre as pedras, que o conduziu a uma mais alta, pequeno pico, que se projetava ao mar. Sentou ali e, perdido em pensamento nenhum, viu o sol ir, lentamente, mergulhando no mar. Seu recolhimento foi, abruptamente, interrompido por  voz doce que, quase sussurrando, disse-lhe ser perigoso fazer o caminho de volta, na escuridão da noite. Era Yanai. Sem nada dizer, ele se levantou e seguiu-a. Ela usava o mesmo short desbotado e a mesma blusa branca, amarrada à altura do umbigo. Enquanto caminhavam, ela fazia algumas recomendações e sugestões sobre o lugar, que ele nada ouvia, pois seus pensamentos acompanhavam o ritmo do andar de Yanai, o balançar de sua bunda e o jeito gracioso de chapear a água das ondas, que vinha lamber-lhe os pés. O seu sotaque e a capacidade de concordar o sujeito com o predicado, indicavam que ela não era nativa. De onde viera? Por que vivia ali? Pensou em fazer-lhe perguntas, mas não quis quebrar o encanto daquele momento. No jantar, descobriu não ser o único hóspede: um casal idoso, com sotaque que não identificou, sentou-se à mesa ao lado e dirigiu-lhe um meigo, mas distante sorriso. Além de Yanai, a pousada tinha, pelo menos naquela semana, mais dois funcionários: um gerente, que ficava em sala separada e um cozinheiro. Yanai era um “faz tudo”: recebia os hóspedes, servia a comida, punha e tirava a mesa e, nas muitas horas vagas, ficava lendo na exígua portaria. Ao buscar a chave de seu quarto, ele, de soslaio, procurou identificar o livro que ela estava lendo: “Ficções do Interlúdio”, de Fernando Pessoa. Ele tinha décadas de Fernando Pessoa, mas não pôde deixar de se surpreender que mulher jovem, talvez não chegada aos trinta, pudesse se interessar por poesia e por um poeta que ressuscitara o “spleen” do começo do século XIX. Já na trigésima página do livro, que começara a ler, percebera estar totalmente desconcentrado: seus pensamentos teimavam em se fixar em Yanai, em seu jeito quase juvenil de gesticular, no seu alvo sorriso largo e... nas suas coxas. Apesar do negrume da noite, resolveu dar uma volta na praia, iluminada, aqui e ali, por vagalumes e cujo silêncio só era quebrado pelo barulho das ondas. De repente, teve a impressão, quase certeza, de que passos se aproximavam. Um frio de medo percorreu-lhe a espinha. Já fora assaltado várias vezes e não suportava a sensação de impotência que, nessas ocasiões, deixava um gosto amargo em sua boca. Ali, naquele lugar ermo, poderia ser morto e ficar até o dia seguinte, para o corpo, já cheirando a decomposição, ser encontrado. A ideia de morrer não o incomodava. Mas que fosse com estilo: de terno e gravata, infarto fulminante, em sua mesa de trabalho. Ou, suprema glória, de beca, no Tribunal, a meio de sustentação oral. Mas ali, naquele lugar afastado, vestindo uma bermuda velha, tênis gasto e sem meias, sem qualquer documento de identidade, seria considerado indigente e enterrado num caixão de madeira pobre. Ele, que sonhava com velório, regado aos uísques, que guardara para a ocasião; um conjunto tocando suas músicas preferidas. Pensou em correr, mas o medo grudava-lhe os pés no chão. Preferiu diminuir os passos, sem olhar para trás: o que tivesse de acontecer, que acontecesse logo. Súbito, uma voz doce, como gorjeio do pássaro amarelo que, rotineiramente passava em sua varanda, tirou-lhe do medo e devolveu-lhe à vida. “O que faz você, andando pela praia, a estas horas?”. Era Yanai, cheirando a banho e vestindo um vestido, cuja cor não podia precisar, mas livre e solto o suficiente para mostrar o começo dos seios e das coxas. Ele falou de seu medo, agora dissipado e ela riu, aquele sorriso largo, que ele já conhecia. Caminharam juntos até o riacho que margeava a montanha e depois voltaram, lentamente, em direção à pousada, conversando banalidades, sobre o possível sol do dia seguinte e a tranquilidade do lugar. Ao subir a escada, que dava acesso ao interior da casa, ela tropeçou, ele amparou-a pelas mãos. Riram e, por alguns segundos, ficaram de mãos dadas. Ele sentiu que estava vivendo um grande perigo. O mesmo perigo de quando, no Arpoador, olhou para V. puxando o biquíni. Seus olhos se cruzaram e, por dois anos, viveram entre o amor intenso e o ódio passional. Mas, ali, naquela noite e naquela escada só importava o calor da mão de Yanai. Convidou-a para conversar mais um pouco e sentaram no sofá de vime da varanda, com o frescor da brisa, que vinha do mar, batendo em seus rostos. Às vezes, os cabelos de Yanai teimavam em cobrir o rosto e ela, meigamente, os afastava, sem interromper a conversa. Fora por cinco anos, professora de história, em colégios particulares de classe média alta, até que um dia, já cansada do quase nenhum interesse dos alunos, resolvera abandonar a carreira. Seus pais morreram em um acidente aéreo, cerda de dois anos, e com o dinheiro do seguro montara aquela pousada, naquele lugar que conhecera nos tempos de “mochileira”. Uma vez por mês ia à São Paulo, fazer compras e o barulho da cidade, o trânsito, a neurose das pessoas, faziam-na voltar correndo para o “Adeus”. O nome era homenagem à definitiva despedida que dera à vida da cidade grande e à imensa tristeza, que se apossou dela com a morte de seus pais. Preferiu receber a indenização que a Companhia Aérea lhe oferecera, a transformar perda tão dolorosa em um medíocre jogo de interesses. Naquele momento da conversa os olhos de Yanai foram tomados por lágrimas e ele se aproximou dela e, com ternura, abraçou-a, enquanto ela pousava a cabeça em seus ombros. Quanto tempo ficaram assim? O suficiente para que o calor do corpo de Yanai passasse para seu corpo. Não era calor que tivesse sexo, mas calor que transmitia um carinho por alguém, que não se via, há séculos. De repente, ela se ergueu num gesto quase brusco, passou as mãos pelos olhos úmidos, deu-lhe boa noite e se retirou, apressadamente, para seu quarto. E ele, por um tempo infinito, ficou ali, sentado, olhando as estrelas e deixando seu pensamento voar, sem pressa e sem rumo, até que os primeiros clarões da aurora avisaram que era hora de dormir. Acordou com um sol forte atravessando a janela. Deixou que o jato do chuveiro o despertasse e de vez; fez a barba, vestiu o calção de banho, a camiseta com o logotipo da “pulma”, enfiou o chinelão de dedo, apanhou a sacola com o livro da véspera e o óleo de praia, e saiu em busca de algum café da manhã. Yanai o esperava com farta mesa de pão e frutas, mas sem sorriso. Seu semblante demonstrava que ela tivera noite atormentada por recordações, das quais preferia ter se esquecido. Os mortos, ao contrário do que diz o poeta, não os conseguimos enterrar. Restam insepultos e aparecem nos momentos mais inesperados. Respeitou o silêncio de Yanai, limitando-se a um bom dia. Ela estava linda, apesar dos olhos apagados: vestia blusa curta, que cobria o biquíni, deixando pedaço de bunda à mostra. Suas coxas roçavam em seus joelho, quando se curvou para servir-lhe o café. Ele teve de fazer um esforço sobre humano para que suas mãos não deslizassem sobre aquele corpo, cheirando à lavanda. Nada se disseram: ela se retirou para a parte interior do restaurante, e ele se levantou e se dirigiu à praia, notando que seu membro ia à frente, como a lhe indicar o caminho. Como no dia anterior, a praia estava vazia. Ao longe, próximo às pedras, onde subira, o casal de velhos, sentados em cadeiras, parecia trocar inocentes afagos. No lado oposto, perto da montanha, uns poucos nativos jogavam bola, enquanto um homem, solitário, brincava nas tímidas ondas. Acomodou-se na cadeira e, após untar seu corpo com bronzeador, retomou, melhor, recomeçou a leitura de véspera. Desta vez concentrou-se nos personagens e na trama, interrompidos quando o calor fez escorrer grossas gotas de suor pelo seu corpo. Entrou, lentamente, no mar, saltando sobre as ondas, ritual que repetia há décadas: o mar era seu elemento natural, corpo de mulher que descobre aos poucos, sorvendo cada pedaço, num ritual mágico. A água morna abraçou-o e o chamou para um mergulho bom e demorado, como permitia o pouco fôlego, de onde emergiu para contemplar toda a paisagem. A água salgada escorreu-lhe pela pele ardida e se lembrou de M., apaixonada pelo mar, como ele, a dizer-lhe que a água escorrendo sobre a pele, dava-lhe a mesma extasiante sensação de esperma, percorrendo-lhe o corpo. Mas ali, naquela praia solitária, mergulhado nas águas de um mar até então desconhecido, M. era fugaz lembrança, que não demorara a ficar. Como um balé que se finda, ele, com a mesma calma da vinda, saiu do mar, de volta à areia. Ao levantar a cabeça, viu alguém sentado, ao lado de sua cadeira. Seu coração bateu forte: seria ela? Apressou o passo, quase correu: era ela, Yanai, cabeça mergulhada entre os braços cruzados. “Oi, tudo bem?” disse ele, quase sussurrando, como se não quisesse interrompê-la de seu refúgio. Yanai ergueu a cabeça e apenas sorriu, um sorriso doce e calmo. “Oh, desculpe-me por ontem, à noite, não quis aborrecê-lo com minhas tristezas”. E se levantou, como quem vai partir, sem nada mais dizer. Ele, no silêncio daquele quase nada, abraçou-a com força, roçou seus lábios nos cabelos de Yanai e depois, docemente, beijou-lhe o rosto. Sentiu seu membro, desobediente a seu comando, enrijecer-se e se encostar nas coxas de Yanai que, ao invés de se afastar, colou seu corpo ao dele. Foi então que os lábios se buscaram freneticamente, e se beijaram e se morderam como, em nova versão do Paraíso, estivessem sozinhos no mundo. Sabiam que estava nascendo uma paixão e, de mãos entrelaçadas, correram para o mar, para comemorarem aquela descoberta do outro.

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