terça-feira, 21 de agosto de 2018

A coisa


Ela se chamava Zuleika, assim com “K”, que o pai era chegado a estrangeirismos. Fora mulher atraente, corpo cheio, no limite de gorda e assim se casou com Olavo, quase 20 anos atrás. Optaram por não ter filhos, aliás, Olavo optou, que não tinha paciência com crianças, correndo pela sala e, alem do mais, era responsabilidade para a qual não se julgava preparado. Casaram-se na Igreja do bairro, com direito a bolo e champanhe nacional, servidos na sacristia e foram passar a lua de mel na Praia Grande, apartamento emprestado pelo primo dele. Zuleika era recepcionista em consultório médico e Olavo era funcionário público. Grana curta, mas vida regrada: uma vez por mês, cineminha e, depois, pizza, em cantina do Bixiga. Transavam, às quartas feiras, se o Corintians ganhasse e aos sábados, se não tivesse muito frio.  Uma vez por ano, fazendo coincidir as férias, iam com o primo e família (marido, mulher e dois filhos) passar uns dias na Praia Grande, desfrutar os prazeres do   verão e comer o “pastel da Sônia”, o melhor do litoral, apesar da fila de uma hora. A vida de casado seguiu, naquele mesmismo, Zuleika engordando e Olavo rareando os cabelos. As transas passaram a ser mensais, aquele “papai-mamãe”, rápido e sem variação, apenas para cumprir o “debitum conjugale” e que foi cada vez mais se espaçando, até chegar apenas como decorrência de datas comemorativas: aniversário, dele ou dela, dia do casamento e réveillon, a depender do teor etílico dele.
Num final de dia, ônibus lotado, Zuleika, de pé, notou que alguma “coisa” comprimia sua bunda. Identificou a “coisa”, pensou em gritar, armar um barraco, botar o safado prá fora, arrastá-lo à uma Delegacia.  Mas ela era tímida demais para qualquer iniciativa. Consumiu-se em indignação, sem espaço, no ônibus para se livrar da “coisa”, cada vez mais incomodantemente presente. Em ânsias, chegou a seu ponto de descida, praticamente atirando-se do ônibus, buscando ar. Mas não contava que o dono da “coisa” a seguiria. Chegou-se,  gentil, convidando-a para aperitivo, ali, no bar da esquina. Ela, irritada, fulminou-o com o olhar,  que era casada, fiel ao marido, que iria gritar, chamar a polícia. Calmamente, ele se desculpou, não queria incomodar, era do bem. Antes de se retirar, entregou-lhe um cartão de visita, em gesto mecânico, atirado dentro da bolsa. Chegou em casa esbaforida, sorte Olavo não estar. Debaixo do chuveiro, ainda remoendo o acontecido, acalmou-se e foi, então, que concebeu o plano. No dia seguinte, antes do almoço, ligou para o dono da “coisa”, Robério era seu nome. Voz trêmula, falou que tinha simpatizado com ele, que se o convite para o aperitivo ainda estivesse de pé, ela topava. Como ele também trabalhava na região da Paulista,  encontraram-se no ponto de ônibus, ao final do dia. Robério, cheio de “milongas” foi logo dando beijinhos no rosto, que melhor ficar por ali mesmo, no bar da esquina da Joaquim Eugenio de Lima, chopp tirado na hora. Cadeiras coladas, Robério conversava, lábios colados ao pescoço de Zuleika, balbuciava pequenas sacanagens, enquanto percorria-lhe as coxas com as mãos espalmadas. Ela, naquele momento, apertava os lábios e fechava os olhos, como se, assim, pudesse apagar a cena vivida. Robério insistia que ela pegasse na “coisa” e ela refugava, a dizer que mal se conheciam. Para acalmá-lo – e até como parte do plano – concordou em irem, no dia seguinte, ao hotel, lá pelos lados da Liberdade, que, segundo ele, recebia casais para encontros rápidos. E foram. Zuleika avisou que faria hora extra no consultório, chegaria tarde e Olavo, com a apatia de sempre, apenas resmungou um tudo bem. E lá estavam eles, Robério e Zuleika, naquele motel, camuflado em hotel, prédio de 3 andares, com corredores escuros, casais se  cruzando, cabeças baixas, querendo esconder suas identidades. Mal entraram no quarto, Robério abraçou-a, arrastando-a para a cama, ela pedindo calma, que pedisse bebida, para relaxar, ainda era cedo  e outras enrolações. Robério pediu vinho branco gelado, de nome estranho e excessivamente doce. Enquanto ele foi ao banheiro, ela misturou na taça, por ele usada, 06 comprimidos esmagados de “dormonid”, que retirara da gaveta de amostra grátis de seu chefe. Robério, retornou, já nu e pronto para a “batalha”, dando profundo gole na taça “batizada”. Foi a vez dela pedir um tempo para ir o banheiro, a pretexto de tomar uma chuveirada.Demorou tempo suficiente para que a droga fizesse efeito. De volta ao quarto, Robério, membro flácido, dormia, profundamente. Era hora de executar o plano. Tirou da bolsa um bisturi e, com calma e precisão, decepou a “coisa”. Encerrada a missão, lavou as mãos, encheu a taça de vinho e brindou “todas as mulheres molestadas”.
Tarde da noite, Olavo estranhou que Zuleika, corpo em brasa, chamava para o amor... o mais intenso dos últimos tempos.

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