Por ocasião da “audiência
pública”, promovida pelo Supremo Tribunal Federal, para debater sobre a
descriminalização do aborto, relevante questão restou sem adequada resposta:
tem nossa Corte Suprema legitimidade para decidir não ser o aborto crime, se
praticado até 12 semanas de gestação? A matéria – aborto, como crime –
encontra-se disciplinada pelos artigos 125 a 128 do Código Penal vigente. Os
artigos 124, 125, 126 e 127, descrevem as hipóteses em que a prática do aborto
constitui crime e o artigo 128 estabelece as hipóteses em que o aborto não é punido:
“se não há meio de salvar a vida da
gestante”, ou “se a gravidez resulta
de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante, ou, quando
incapaz, de seu representante legal.” Todavia, em qualquer das hipóteses,
só se admite aborto realizado por médico.
Segundo pacífico entendimento doutrinário, as hipóteses,
elencadas no artigo 128 são restritivas, não admitindo interpretação extensiva,
vale dizer que a propria interrupção da gravidez, no caso de ser o feto
portador de anomalia física – o chamado aborto eugênico ou eugenésico –
caracteriza crime. Todavia, o Supremo Tribunal Federal, em “ação de descumprimento de preceito
fundamental”, admitiu, como não crime, quando o aborto é praticado, sendo o
feto portador de anacefalia ou outras deformidades análogas.
A partir de tal decisão, estavam abertas as portas para que a
Corte abdicasse das hipóteses, especificadas no artigo 128 e passasse a “criar” outras, segundo conveniências de
momento. Por óbvio, a lei não pode permanecer estática, alheia às modificações
sociais e econômicas. O que se questiona é se estas necessárias mudanças não
seriam – e o são – atribuições exclusivas do Poder Legislativo, ocupado,
exatamente, pelos representantes do povo, de onde emana “toda a vontade e poder” de criar e modificar as leis, adequando-as
à nova realidade. Já de larga data, assistimos ao Congresso, por leniência ou
falta de altivez, abrir mão de suas atribuições, permitindo, passivamente, que
o Supremo “legisle”. A competência
daquela Corte está, exaustivamente, descrita no art. 102 da Constituição
Federal e, em nenhuma de suas alíneas, insere-se o poder de modificar lei
ordinária. O Código Penal foi criado por lei infraconstitucional, tendo
sofrido, ao longo do tempo, centenas de modificações, sempre através de leis
ordinárias. Nos períodos de exceção, legislou-se através de decretos lei, mas,
em nenhum momento deparou-se com modificações emanadas do Poder Judiciário.
Sou, radicalmente, contra o aborto, principalmente em uma
época em que preservativos são de uso comum e, até, distribuídos,
gratuitamente. Todavia, deixando de lado opinião pessoal, o que questiono é a
competência do Supremo Tribunal Federal para, utilizando filigranas jurídicas,
chamar para si o debate sobre o tema, debate este, insisto, a ser travado no
sítio próprio, no caso, o Congresso Nacional. Conferir à Corte Suprema poder
para “fazer e modificar leis” é
implantar a insegurança jurídica, colocando em risco os direitos e garantias
individuais.
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