Deu-se, então, que foi morar em nossa rua aquela mulher, de
estranho nome, se chamava: Umbertina. Acabara de casar o filho e enterrar o
marido, fatos que pareciam lhe trazer grande alegria. Vivia só, mas não em solidão,
pois a todos se prendia, seja para “um
dedo de prosa”, seja para visita inesperada, a se arrastar até que o dono
da casa cochilasse no sofá, ela a falar e ele ou ela a escutar. Comentava tudo
que se passava a sua volta e, o que não passava, ela inventava, pois a
imaginação foi colocada dentro da cabeça pra isto mesmo. No cinema, preferia filmes
de cobois, - ou cowboys, como dizem os
mais sabidos -, a quem, quase aos gritos, prevenia dos perigos, desatenta aos
reclamos dos vizinhos de poltrona. Voltava para casa aliviada, certa que a
vitória final deveu-se a ela, sempre alerta em defesa dos justos, que índio é
bicho traiçoeiro, só ataca pelas costas. Ainda mais índio americano, sempre
parrudo, com quem sonhava, à noite, esfregando sua vergonha, na secura desde que o traste do marido morrera,
ele que não prestava para nada, beberrão, vagabundo, mas que era danado de bom
nas coisas de sem-vergonhice. Uma vez por ano, dona Umbertina sumia por uns
quinze dias. Contava que entrava numa excursão de terceira idade e batia perna
pelas estradas. Quando voltava, vinha cheia de histórias e falava, até ficar
sem voz e o ouvinte sem ouvido. Quantos anos davam para Umbertina? Talvez
sessenta, talvez quase setenta, mas, pela bunda ainda empinada e pelos seios
fartos, despertava interesses vadios, principalmente do jornaleiro, onde
comprava revistas de fofocas noveleiras. Todavia, para respeitar a verdade, é
preciso que se diga que nunca esteve envolvida em safadeza. Falava da vida de
todo mundo, menos da dela, que devia ser segredos sepultados. Um dia, foi a
minha casa, olhos inchados de quem chorara muito. Arrastou minha tia, que
morava conosco, e foi para o quarto. Inútil escutar pela porta, que elas
falavam baixinho, aliás, só ela falava e, de vez em quando, desandava a soluçar
e só se ouvia mesmo o soluço e o gemido doído de alguma coisa que doía muito.
Saiu de mansinho, mal chegava ao portão e nós cercando a tia para saber porque
dona Umbertina, sempre tão cheia de risada e falação, chorava como, em final de
novela, quando a preterida vê seu amor
casar com sua melhor amiga. A tia, depois de muito não falo, preparado só para fazer suspense, como nos filmes de
terror, acabou contando que o médico descobriu dona Umbertina ser portadora de câncer
nas cordas vocais e que, em pouco tempo, ela ficaria muda. Ninguém podia
imaginar dona Umbertina mergulhada em definitivo silêncio. Passamos a olhá-la
com compaixão, ela cada vez mais abatida, não aparecia mais para a novela das
oito, trancada em casa com sua infelicidade. Aí sucedeu que passou o
fim-de-semana sem ninguém ver dona Umbertina, nem à missa foi. Esqueci de
contar que ela possuía um cachorro, vira-lata, chamado Sultão que, logo no
amanhecer da segunda feira, começou a latir, latido que se tornou uivo, que chamou nossa atenção e dos outros
vizinhos. Alguém pulou o muro da casa de dona Umbertina e, da porta da frente,
saía cheiro nauseabundo. Logo, várias pessoas se juntaram, dando palpites sobre
o que fazer, até que seu Germano, com a autoridade de sargento aposentado, deu
a decisão:- “vou entrar pelo fundos e não
quero ninguém atrás de mim”. Como
autoridade é autoridade, todos obedeceram, apesar dos resmungos de dona
Matilde, que era a melhor amiga de Umbertina, que tinha prioridade, que Germano
mal falava com a dita cuja. Passados poucos minutos, o ilustre representante
das forças armadas saiu pela porta da frente. Estava lívido, com um pedaço de
papel na mão. Encontrara dona Umbertina morta, um copo de formicida ao lado. No
pedaço de papel, deixara sua despedida: “sem
poder falar, melhor morrer.”
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