segunda-feira, 18 de maio de 2015

Uma quase noite e uma quase mulher


O vento frio do outono moribundo tornara ausentes os habituais andarilhos do parque, cuja pista ficara enlameada, pela chuva da véspera. Encolhidos, a um canto, guardas tomavam conta de nada, pois nem os pivetes, fumadores de maconha, que se reuniam, na antiga pista de boliche, apresentavam-se para o fumacê diário. A noite adiantara seu relógio. Bem diferente dos entardecerem veranicos, quando ele dava voltas, atribuindo notas às coxas torneadas, que passavam, em sentido contrário. Aos domingos, eram comuns as notas 10, tal era a profusão de coxas, que enfeitavam o parque, em constantes ir e vir. Mas, naquela sombria noite de outono, afora dois ou três transeuntes, o deserto de coxas era total, o que alargava, à exaustão, o trajeto a ser percorrido. Não fosse o desprazer de ficar em casa, quando o cheiro de tempero empesteava o ambiente, não fosse a necessidade de, pelo andar, digladiam-se com a diabetes, por certo ele estaria sentado, naquele bar de canto de rua, bebendo alguma coisa e falando mal do governo. Mas ali estava ele, andar pesado, orelhas cortadas pelo vento, dando voltas em torno do lago. De repente, na curva do portão principal, ela surgiu, conjunto colado ao corpo e rabo-de-cavalo, açoitando o espaço. Apenas sorriu para ele, o sorriso da cumplicidade dos solitários de uma noite, sem dono. Na segunda volta, quando se cruzaram – andavam em sentido contrario – ela diminuiu o passo, até parar a sua frente:
- ‘’O senhor se importaria de eu andar a seu lado? O parque está por demais vazio...’’
- ‘’É um prazer. Aliás, você, nem eu deveríamos estar aqui a esta hora!’’
- ‘’Você tem razão, mas a angústia bateu forte e eu não consegui ficar em casa, pensando no meu desalento, na minha incapacidade de lidar com a morte, essa inimiga profissional que me persegue, até me vencer!’’
Era, sem dúvida, um papo estranho, para uma quase fria noite de um quase inverno. Não que ele esperasse uma cantada. Batera os 60, quando se torna ser imperceptível, fantasma corpóreo que não desperta interesses e palpitações. Aliás, nunca despertara. Nem feio, nem bonito, nem triste, nem espirituoso. Como na Bíblia: ‘’porque és morno, eu te vomitarei de minha boca. ’’

Tivera, ao longo da vida, até algumas mulheres deslumbrantes, conquistadas com gestos e atitudes estudadas. Mas, logo elas se cansaram dele, de sua falsa cultura, de sua pose de que ‘’sou mais eu’’ e o foram deixando para traz, amargando a falta da mão, que não afaga, da boca, cujos lábios não se sugam. Vivia um casamento habitado pelo ressentimento, daí seu refúgio naquele parque, sempre monotonamente igual, como ele. Tentou sair de si e passear na angústia dela, no que ela chamava luta fracassada contra a morte. Chamava-se Carolina – ela, não a morte, que esta tem todos os nomes -, era médica, trabalhava ali perto, no Hospital do Câncer e sempre havia alguém morrendo, junto de si. Não, não se acostumara. Travestida de Deus, imaginava poder salvar a próxima vítima. Daí a angústia do fracasso. Pretensão – pensou ele – querer disputar com Deus, que é onisciente, onipresente e onipotente, como ensinava o ‘’primeiro catecismo da doutrina cristã’’, de sua distante e apagada infância. Ah, não acredita em Deus? Perde para ele, todos os dias e, mesmo assim, não acredita nele? Pensou em chamá-la de imbecil ou ignorante, mas preferiu dizer isto com o olhar. ‘’E você, acredita?’’ – perguntou ela. – ‘’É claro e tenho total temor reverencial. Se não acreditasse – e temesse – já teria me livrado desta vida, que nos cobra tudo, principalmente esta coisa volátil e indefinida, chamada felicidade’’. – ‘’Por que, você não é feliz?’’ – ‘’Deus me livre. A felicidade gera um compromisso constante, quase diário, de você ser coerente consigo mesmo, viver em harmonia consigo mesmo, ser virtuoso, olhar apenas o lado bom das coisas, não olhar, nem de soslaio, para a mulher do próximo, ter um hipócrita sorriso de beatitude nos lábios, enfim, ser um chato. E o tanto de inveja que o feliz atrai? Não, prefiro ter instantes, cada vez mais aros, de felicidade e, quando os tenho, procuro disfarçar, fazendo cara de quem comeu e não gostou.’’ – Ela sorriu mais largo: ‘’você é doido, assim ou está fazendo gênero?’’ ‘’Nem uma coisa, nem outra. Estou vendo você pela primeira e única vez. Tenho pavor a médico. Olham pra gente, procurando, pelo menos, um sinal de doença e, além do mais, sempre me dão a impressão que tem as mãos e as roupas impregnadas de micróbios!’’ Ela riu, mais uma vez e tocou-lhe o ombro, o que o fez se afastar para o lado. – ‘’Você é homo?’’, perguntou ela. – ‘’É claro que não. Não sou corajoso para tanto, apenas perdi o hábito de contato físico, e não pretendo readquiri-lo’’. – Ela parou a sua frente, segurou-lhe as mãos, olhou-o nos olhos e disse: - ‘’pois saiba que você ainda é um homem interessante, com quem eu transaria.’’ Aquele ‘’ainda’’ doeu-lhe, como se tivesse pisado em caco-de-vidro. Como estava próximo a um dos portões, ele saiu em desabalada corrida, sem olhar para trás. Provavelmente se tratava de um desses fantasmas, que surgem em noites sombrias. 

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