O vento frio do outono moribundo tornara ausentes os
habituais andarilhos do parque, cuja pista ficara enlameada, pela chuva da
véspera. Encolhidos, a um canto, guardas tomavam conta de nada, pois nem os
pivetes, fumadores de maconha, que se reuniam, na antiga pista de boliche,
apresentavam-se para o fumacê diário. A noite adiantara seu relógio. Bem
diferente dos entardecerem veranicos, quando ele dava voltas, atribuindo notas
às coxas torneadas, que passavam, em sentido contrário. Aos domingos, eram
comuns as notas 10, tal era a profusão de coxas, que enfeitavam o parque, em
constantes ir e vir. Mas, naquela sombria noite de outono, afora dois ou três
transeuntes, o deserto de coxas era total, o que alargava, à exaustão, o
trajeto a ser percorrido. Não fosse o desprazer de ficar em casa, quando o
cheiro de tempero empesteava o ambiente, não fosse a necessidade de, pelo
andar, digladiam-se com a diabetes, por certo ele estaria sentado, naquele bar
de canto de rua, bebendo alguma coisa e falando mal do governo. Mas ali estava
ele, andar pesado, orelhas cortadas pelo vento, dando voltas em torno do lago.
De repente, na curva do portão principal, ela surgiu, conjunto colado ao corpo
e rabo-de-cavalo, açoitando o espaço. Apenas sorriu para ele, o sorriso da
cumplicidade dos solitários de uma noite, sem dono. Na segunda volta, quando se
cruzaram – andavam em sentido contrario – ela diminuiu o passo, até parar a sua
frente:
- ‘’O senhor se
importaria de eu andar a seu lado? O parque está por demais vazio...’’
- ‘’É um prazer. Aliás, você, nem eu deveríamos estar aqui a
esta hora!’’
- ‘’Você tem razão, mas a angústia bateu forte e eu não
consegui ficar em casa, pensando no meu desalento, na minha incapacidade de
lidar com a morte, essa inimiga profissional que me persegue, até me vencer!’’
Era, sem dúvida, um papo estranho, para uma quase fria noite
de um quase inverno. Não que ele esperasse uma cantada. Batera os 60, quando se
torna ser imperceptível, fantasma corpóreo que não desperta interesses e
palpitações. Aliás, nunca despertara. Nem feio, nem bonito, nem triste, nem
espirituoso. Como na Bíblia: ‘’porque és
morno, eu te vomitarei de minha boca. ’’
Tivera, ao longo da vida, até algumas mulheres deslumbrantes,
conquistadas com gestos e atitudes estudadas. Mas, logo elas se cansaram dele,
de sua falsa cultura, de sua pose de que ‘’sou
mais eu’’ e o foram deixando para traz, amargando a falta da mão, que não afaga,
da boca, cujos lábios não se sugam. Vivia um casamento habitado pelo
ressentimento, daí seu refúgio naquele parque, sempre monotonamente igual, como
ele. Tentou sair de si e passear na angústia dela, no que ela chamava luta
fracassada contra a morte. Chamava-se Carolina – ela, não a morte, que esta tem
todos os nomes -, era médica, trabalhava ali perto, no Hospital do Câncer e
sempre havia alguém morrendo, junto de si. Não, não se acostumara. Travestida
de Deus, imaginava poder salvar a próxima vítima. Daí a angústia do fracasso.
Pretensão – pensou ele – querer disputar com Deus, que é onisciente,
onipresente e onipotente, como ensinava o ‘’primeiro
catecismo da doutrina cristã’’, de sua distante e apagada infância. Ah, não
acredita em Deus? Perde para ele, todos os dias e, mesmo assim, não acredita
nele? Pensou em chamá-la de imbecil ou ignorante, mas preferiu dizer isto com o
olhar. ‘’E você, acredita?’’ –
perguntou ela. – ‘’É claro e tenho total
temor reverencial. Se não acreditasse – e temesse – já teria me livrado desta
vida, que nos cobra tudo, principalmente esta coisa volátil e indefinida,
chamada felicidade’’. – ‘’Por que,
você não é feliz?’’ – ‘’Deus me
livre. A felicidade gera um compromisso constante, quase diário, de você ser
coerente consigo mesmo, viver em harmonia consigo mesmo, ser virtuoso, olhar
apenas o lado bom das coisas, não olhar, nem de soslaio, para a mulher do
próximo, ter um hipócrita sorriso de beatitude nos lábios, enfim, ser um chato.
E o tanto de inveja que o feliz atrai? Não, prefiro ter instantes, cada vez
mais aros, de felicidade e, quando os tenho, procuro disfarçar, fazendo cara de
quem comeu e não gostou.’’ – Ela sorriu mais largo: ‘’você é doido, assim ou está fazendo gênero?’’ – ‘’Nem uma coisa, nem outra. Estou vendo você
pela primeira e única vez. Tenho pavor a médico. Olham pra gente, procurando,
pelo menos, um sinal de doença e, além do mais, sempre me dão a impressão que
tem as mãos e as roupas impregnadas de micróbios!’’ Ela riu, mais uma vez e
tocou-lhe o ombro, o que o fez se afastar para o lado. – ‘’Você é homo?’’, perguntou ela. – ‘’É claro que não. Não sou corajoso para tanto, apenas perdi o hábito
de contato físico, e não pretendo readquiri-lo’’. – Ela parou a sua frente,
segurou-lhe as mãos, olhou-o nos olhos e disse: - ‘’pois saiba que você ainda é um homem interessante, com quem eu
transaria.’’ Aquele ‘’ainda’’
doeu-lhe, como se tivesse pisado em caco-de-vidro. Como estava próximo a um dos
portões, ele saiu em desabalada corrida, sem olhar para trás. Provavelmente se
tratava de um desses fantasmas, que surgem em noites sombrias.
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