O bar, quase deserto naquela noite chegante, situava-se no
subsolo da galeria, ali no centro da cidade. Durante o dia, funcionava como
restaurante que teimava em manter a classe e o charme dos anos 70, quando a
galeria foi inaugurada. Hoje, era um quase fantasma, com suas lojas
abandonadas, como, de resto, tudo o que havia de melhor, no centro. A livraria,
de livros importados, a barbearia, onde mulher não entrava, a casa de queijos e
vinhos finos, tudo isto desaparecera, substituídos por lanchonetes de odores
suspeitos e freqüentadas, quando a madrugada batia à porta, por prostitutas
ambulantes, fracassadas em seu fazer. Mas o restaurante do subsolo,
tradicionalmente decorado, insistia em sobreviver, transformando-se, a partir
do escurecer, em ponto de encontro de solteirões e descasados de 50 ou mais
anos. Na entrada, um pianista, talvez resgatado do Titanic, tocava velhas
canções, blues chorosos ou cançonetas francesas. Positivamente, não era lugar
para mulheres, a não ser prostitutas, escolhidas, com esmero, pelo porteiro
gentil, que conhecia os freqüentadores da casa. Era quase um clube privé, onde
se falava de política e de negócios, sempre nebulosos. Luiz Claudio freqüentava
aquele lugar, levado que foi quase 10 anos atrás, quando Maria Clara simplesmente
disse-lhe, sem emoção: - ‘’acabou, Luiz
Claudio, você virou passado. ’’ E saiu, arrastando a mesma mala que, cinco
anos antes, trouxera para dentro do apartamento: - ‘’amor, não quero ser companhia apenas para seus dias de solidão. Vim
para ficar. Resolve: desarrumo a mala ou vou embora para sempre?’’
Luiz Claudio abraçou-a, com incontida ternura, arrastou-a
para cama e se amaram, doidamente. Com o tempo, a paixão esvaneceu-se, jantavam
em silencio e passaram a se olhar apenas como conhecidos. Quando Maria Clara
saiu, arrastando a mala, Luiz Claudio foi à janela e aspirou o perfume de jasmim,
que exalava da cantoneira. Era o perfume da liberdade. Poucos dias depois,
bateu solidão: os amigos, casados, não tinham tempo para ele. As mulheres,
companheiras de noites doidivanas, ou ficaram velhas e amargas, ou tinham
desaparecido, naquela cidade sem fim. Ficara, apenas, Henrique, seu amigo desde
a faculdade, que o apresentara àquele bar. Encontraram-se, por acaso, no fórum,
foram tomar um café, ali na Conde do Pinhal. Falaram do trabalho, da vida e
ele, quase como desabafo, da partida de Maria Clara. – ‘’Tava na cara que não podia dar certo, Luiz Claudio. Até que durou
muito. Você sempre foi obvio. Até abandonou nosso futebol, das quartas, à
noite. Mulher gosta do clima de incerteza, duvidar, sentir-se traída, mesmo que
não o seja. Você foi companheiro exaustivo, com horário certo para chegar em
casa, sempre presente, não deu espaço para dúvidas, ressentimentos, e mulher,
principalmente esposa, precisa ter dúvidas e ressentimentos em relação a
‘’seu’’ homem, precisa se sentir ameaçada, nesse sentimento de posse. Em
resumo: você foi o homem ideal e a mulher odeia o homem ideal, porque, além de
chato, a faz sentir inferior’’.
Luiz Claudio ria da filosofia de botequim de Henrique que se
prolongou até o bar daquela decadente galeria. O tempo passara e ali estava
exatamente ele, pensando em Henrique, que se matara, poucos meses atrás,
atirando-se de seu apartamento, situado no 12º andar, quando ela chegou,
sozinha, indo se sentar, ao lado do piano. Morena, quase 1,80m, vestia um
sóbrio conjunto verde musgo. Não, não era prostituta à caça de cliente. Nem
mesmo dirigiu seu olhar para os poucos homens, que conversavam, ruidosamente e
muito menos para ele, no lado oposto. Ela pediu um uísque, cuja garrafa fora
deixada sobre a mesa. E, baixinho, disse alguma coisa ao pianista, que começou
a tocar ‘’Stardust’’. Meia hora depois, ela já quase esvaziara a garrafa de
uísque e com voz rouca e sempre baixa, acompanhava o pianista, que tocava uma seqüência
de musicas, pedidas por ela. Luiz Claudio até teve a intenção de sentar ao lado
dela, puxar conversa... desistiu. Era obvio que ela vivia uma angustia, que não
era divisível. De repente, ela pediu a conta, pagou e saiu, com passos
embaralhados. Ainda não haviam passados 5 minutos, quando uma freada brusca e
gritos engravidaram o bar. Luiz Claudio subiu, de dois em dois, os degraus que
davam acesso à rua. Lá estava ela, atirada ao chão, ensangüentada, pernas
abertas, expostas na avenida. Luiz Claudio atravessou a multidão, que se
formava, tirou o paletó e cobriu as pernas desnecessárias. Afinal a morte
merece ter compostura.
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