sexta-feira, 15 de maio de 2015

O bar da galeria decadente e seus freqüentadores idem


O bar, quase deserto naquela noite chegante, situava-se no subsolo da galeria, ali no centro da cidade. Durante o dia, funcionava como restaurante que teimava em manter a classe e o charme dos anos 70, quando a galeria foi inaugurada. Hoje, era um quase fantasma, com suas lojas abandonadas, como, de resto, tudo o que havia de melhor, no centro. A livraria, de livros importados, a barbearia, onde mulher não entrava, a casa de queijos e vinhos finos, tudo isto desaparecera, substituídos por lanchonetes de odores suspeitos e freqüentadas, quando a madrugada batia à porta, por prostitutas ambulantes, fracassadas em seu fazer. Mas o restaurante do subsolo, tradicionalmente decorado, insistia em sobreviver, transformando-se, a partir do escurecer, em ponto de encontro de solteirões e descasados de 50 ou mais anos. Na entrada, um pianista, talvez resgatado do Titanic, tocava velhas canções, blues chorosos ou cançonetas francesas. Positivamente, não era lugar para mulheres, a não ser prostitutas, escolhidas, com esmero, pelo porteiro gentil, que conhecia os freqüentadores da casa. Era quase um clube privé, onde se falava de política e de negócios, sempre nebulosos. Luiz Claudio freqüentava aquele lugar, levado que foi quase 10 anos atrás, quando Maria Clara simplesmente disse-lhe, sem emoção: - ‘’acabou, Luiz Claudio, você virou passado. ’’ E saiu, arrastando a mesma mala que, cinco anos antes, trouxera para dentro do apartamento: - ‘’amor, não quero ser companhia apenas para seus dias de solidão. Vim para ficar. Resolve: desarrumo a mala ou vou embora para sempre?’’
Luiz Claudio abraçou-a, com incontida ternura, arrastou-a para cama e se amaram, doidamente. Com o tempo, a paixão esvaneceu-se, jantavam em silencio e passaram a se olhar apenas como conhecidos. Quando Maria Clara saiu, arrastando a mala, Luiz Claudio foi à janela e aspirou o perfume de jasmim, que exalava da cantoneira. Era o perfume da liberdade. Poucos dias depois, bateu solidão: os amigos, casados, não tinham tempo para ele. As mulheres, companheiras de noites doidivanas, ou ficaram velhas e amargas, ou tinham desaparecido, naquela cidade sem fim. Ficara, apenas, Henrique, seu amigo desde a faculdade, que o apresentara àquele bar. Encontraram-se, por acaso, no fórum, foram tomar um café, ali na Conde do Pinhal. Falaram do trabalho, da vida e ele, quase como desabafo, da partida de Maria Clara. – ‘’Tava na cara que não podia dar certo, Luiz Claudio. Até que durou muito. Você sempre foi obvio. Até abandonou nosso futebol, das quartas, à noite. Mulher gosta do clima de incerteza, duvidar, sentir-se traída, mesmo que não o seja. Você foi companheiro exaustivo, com horário certo para chegar em casa, sempre presente, não deu espaço para dúvidas, ressentimentos, e mulher, principalmente esposa, precisa ter dúvidas e ressentimentos em relação a ‘’seu’’ homem, precisa se sentir ameaçada, nesse sentimento de posse. Em resumo: você foi o homem ideal e a mulher odeia o homem ideal, porque, além de chato, a faz sentir inferior’’.

Luiz Claudio ria da filosofia de botequim de Henrique que se prolongou até o bar daquela decadente galeria. O tempo passara e ali estava exatamente ele, pensando em Henrique, que se matara, poucos meses atrás, atirando-se de seu apartamento, situado no 12º andar, quando ela chegou, sozinha, indo se sentar, ao lado do piano. Morena, quase 1,80m, vestia um sóbrio conjunto verde musgo. Não, não era prostituta à caça de cliente. Nem mesmo dirigiu seu olhar para os poucos homens, que conversavam, ruidosamente e muito menos para ele, no lado oposto. Ela pediu um uísque, cuja garrafa fora deixada sobre a mesa. E, baixinho, disse alguma coisa ao pianista, que começou a tocar ‘’Stardust’’. Meia hora depois, ela já quase esvaziara a garrafa de uísque e com voz rouca e sempre baixa, acompanhava o pianista, que tocava uma seqüência de musicas, pedidas por ela. Luiz Claudio até teve a intenção de sentar ao lado dela, puxar conversa... desistiu. Era obvio que ela vivia uma angustia, que não era divisível. De repente, ela pediu a conta, pagou e saiu, com passos embaralhados. Ainda não haviam passados 5 minutos, quando uma freada brusca e gritos engravidaram o bar. Luiz Claudio subiu, de dois em dois, os degraus que davam acesso à rua. Lá estava ela, atirada ao chão, ensangüentada, pernas abertas, expostas na avenida. Luiz Claudio atravessou a multidão, que se formava, tirou o paletó e cobriu as pernas desnecessárias. Afinal a morte merece ter compostura. 

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