A madrugada já avançada, em direção à manhã de sábado e
Henrique ainda lutava com o travesseiro, atormentado pela culpa, que o
afastava, do sono. Casado, há quase 20 anos, com Helena, sempre lhe fora fiel,
jamais, em qualquer momento, sentira o menor interesse por outra mulher.
Considerava a confiança a viga mestra do casamento e, além do mais, Helena o
satisfazia em tudo, tanto como companheira, quanto como fêmea. Conhecera-a na
mesma agencia bancária, onde fora trabalhar. Fora quase amor à primeira vista: em
um ano, namoraram, noivaram e casaram, ele com 24, ela com 21 anos. Foram
tempos difíceis: dinheiro pouco, morando na periferia, sem carro, apartamento
pequeno e Helena sem nada reclamar, dando a maior força. O projeto de filho foi
sendo adiado, até que ambos, já passados dos 30, desistiram. – ‘’temos um ao outro e, para mim, isto basta’’,
dizia Helena. Com muito esforço e dedicação, Henrique chegara a diretor
regional do banco e Helena era gerente de RH de uma multinacional. Mudaram para
confortável apartamento, em Moema, cada um tinha seu carro e, nos finais de
semana, estavam sempre juntos. Mas aí veio aquela fatídica 6ª feira. Henrique
dirigia-se, em direção à sede do banco, quando, fechado o farol, ao lado do
seu, parou um carro, ao volante uma mulher. Instintivamente, olharam-se e ela
sorriu um dos mais belos sorrisos que já vira. Ela jogou-lhe um cartão, que
caiu sobre o banco do carona, o semáforo abriu e eles se perderam no sufocante
trânsito matinal. O cartão dizia que ela era ‘’promoter’’, chamava-se Sabrina e continha um número de celular. A
manhã transcorreu agitada, reunião com gerentes a ele subordinados, revisão de
metas e outras expedientes de rotina. Apenas quando foi pagar a conta do almoço
e o cartão veio junto com o dinheiro, é que ele se lembrou de Sabrina. Já na
rua, quase instintivamente ligou para ela, sem ter muito a dizer. Ela, ao
contrário, totalmente à vontade, conversou como se o conhecesse há séculos.
Acabaram marcando um ‘’happy hour’’
para aquele mesmo dia. Já a partir daquele momento, Henrique sentiu o coração
apertado de remorso e mentiu para si mesmo que seria apenas um encontro, sem
qualquer conseqüência. Quando Sabrina entrou no bar, seios apontando para o
norte, coxas, maravilhosas coxas, à mostra, todas as cabeças se voltaram para
aquela mulher de 1,80m, mais ou menos 30 anos, que já entrava abrindo largo
sorriso para Henrique. Sentou-se ao lado dele, transferindo-lhe o calor de seu
corpo e perfumando-lhe com seu hálito adocicado. Contou um pouco de sua vida,
que promovia eventos para empresas, daí seu jeito expansivo. De repente, não
mais que de repente, ela lhe tomou as mãos, depositando-as sobre as coxas e,
lábios colados ao ouvido dele, sussurrou:
- ‘’quero você,
agora!’’ Henrique se deixou levar, sem qualquer resistência e se amaram,
com a intensidade de apaixonados. Depois, quando a deixou no carro, ela lhe deu
rápido beijo e foi embora, despedindo-se, assim, como se despede de um
estranho, em quem se esbarrou, na rua. Em casa, banho tomado, sentado à mesa do
jantar, Helena questionou o silencio, o ar distante, que ele justificou pelos
problemas do dia. Contrariando o hábito, ela foi dormir e ele se deixou ficar,
sentado no sofá, olhar perdido, o rosto de Sabrina, os seios de Sabrina, as
coxas de Sabrina e até o gosto intimo de Sabrina indo e vindo, cravando-lhe a
culpa da traição imerecida, que o perseguiu, noite adentro. Se confessasse,
Helena o perdoaria? Afinal fora apenas uma não querida transa com estranha
pessoa, que não deixara marca. E, se Helena não o perdoasse, o que faria da
vida, sem ela? Sábado, céu cinzento, foram, ele e sua culpa, correrem no
Ibirapuera. Talvez, ali, entre as árvores, recebesse um sinal, indicando-lhe o
que fazer. Na segunda volta, encontrou Virgílio, seu amigo de longa data.
Tinham feito carreira no mesmo banco, passaram pelas mesmas dificuldades. Era
alguém com quem podia abrir o peito, vomitar sua culpa e pedir sugestão.
Virgilio já passara por dois casamentos, indo para o terceiro e, por certo,
entendia destas coisas de traição e culpa.
- ‘’Virgílio, que bom
que te encontrei! Aconteceu uma coisa terrível e não sei o que fazer.’’
- ‘’Fique tranqüilo,
Henrique, já sei o que é. Não tome nenhuma medida precipitada. Na verdade, eu
ia te contar, apenas achei que não devia me meter em sua vida. Mas, se você já
sabe, conte comigo, que amigo é pra estas coisas.’’
Quase sem voz, ofegante e surpreso, apenas perguntou:
- ‘’Afinal, o que você
sabe, Virgílio?’’
- ‘’Da Helena, sua
esposa, que está transando com o Glauco, o diretor de RH do banco! Não é
isto?’’
- ‘’Claro que é’’,
respondeu Henrique, deixando Virgílio sozinho, estático, enquanto ele, como se
fosse um robô, saía do parque. Esqueceu o carro e foi andando para casa, cabeça
a mil, quase sendo atropelado, quando atravessava a avenida. Em casa, Helena
guardava as compras do supermercado.
- ‘’Poxa, Henrique, por
que você não me esperou para irmos ao parque? Nossa, você está pálido,
aconteceu alguma coisa?’’
Ele, tremendo, abriu a geladeira, encheu o copo de suco,
bebeu-o, vagarosamente, e perguntou:
- ‘’Helena, se você
descobrisse que eu te traí, o que você faria?’’
- ‘’Acho que eu te
matava, Henrique. Por quê? Você me traiu?’’
- ‘’Claro que não,
apenas curiosidade’’, respondeu, indo para o quarto. Abriu, ao acaso, a
Bíblia, colocada no criado mudo. Evangelho de Mateus: ‘’ouvistes que foi dito:
‘’olho por olho, dente
por dente’’. Ora, eu vos digo: não
ofereçais resistência ao malvado! Pelo contrário, se alguém te bater na face
direita, oferece-lhe também a esquerda.’’ Fechou a Bíblia, foi até o armário,
retirou o revolver de dentro de uma caixa, voltou à cozinha, Helena, de costas,
guardava alguma coisa. Desferiu-lhe dois tiros e depois disparou contra a
própria cabeça. Decididamente, não fora convincente a lição do evangelista.
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