sexta-feira, 17 de junho de 2016

Sobre traição e culpa


A madrugada já avançada, em direção à manhã de sábado e Henrique ainda lutava com o travesseiro, atormentado pela culpa, que o afastava, do sono. Casado, há quase 20 anos, com Helena, sempre lhe fora fiel, jamais, em qualquer momento, sentira o menor interesse por outra mulher. Considerava a confiança a viga mestra do casamento e, além do mais, Helena o satisfazia em tudo, tanto como companheira, quanto como fêmea. Conhecera-a na mesma agencia bancária, onde fora trabalhar. Fora quase amor à primeira vista: em um ano, namoraram, noivaram e casaram, ele com 24, ela com 21 anos. Foram tempos difíceis: dinheiro pouco, morando na periferia, sem carro, apartamento pequeno e Helena sem nada reclamar, dando a maior força. O projeto de filho foi sendo adiado, até que ambos, já passados dos 30, desistiram. – ‘’temos um ao outro e, para mim, isto basta’’, dizia Helena. Com muito esforço e dedicação, Henrique chegara a diretor regional do banco e Helena era gerente de RH de uma multinacional. Mudaram para confortável apartamento, em Moema, cada um tinha seu carro e, nos finais de semana, estavam sempre juntos. Mas aí veio aquela fatídica 6ª feira. Henrique dirigia-se, em direção à sede do banco, quando, fechado o farol, ao lado do seu, parou um carro, ao volante uma mulher. Instintivamente, olharam-se e ela sorriu um dos mais belos sorrisos que já vira. Ela jogou-lhe um cartão, que caiu sobre o banco do carona, o semáforo abriu e eles se perderam no sufocante trânsito matinal. O cartão dizia que ela era ‘’promoter’’, chamava-se Sabrina e continha um número de celular. A manhã transcorreu agitada, reunião com gerentes a ele subordinados, revisão de metas e outras expedientes de rotina. Apenas quando foi pagar a conta do almoço e o cartão veio junto com o dinheiro, é que ele se lembrou de Sabrina. Já na rua, quase instintivamente ligou para ela, sem ter muito a dizer. Ela, ao contrário, totalmente à vontade, conversou como se o conhecesse há séculos. Acabaram marcando um ‘’happy hour’’ para aquele mesmo dia. Já a partir daquele momento, Henrique sentiu o coração apertado de remorso e mentiu para si mesmo que seria apenas um encontro, sem qualquer conseqüência. Quando Sabrina entrou no bar, seios apontando para o norte, coxas, maravilhosas coxas, à mostra, todas as cabeças se voltaram para aquela mulher de 1,80m, mais ou menos 30 anos, que já entrava abrindo largo sorriso para Henrique. Sentou-se ao lado dele, transferindo-lhe o calor de seu corpo e perfumando-lhe com seu hálito adocicado. Contou um pouco de sua vida, que promovia eventos para empresas, daí seu jeito expansivo. De repente, não mais que de repente, ela lhe tomou as mãos, depositando-as sobre as coxas e, lábios colados ao ouvido dele, sussurrou:
- ‘’quero você, agora!’’ Henrique se deixou levar, sem qualquer resistência e se amaram, com a intensidade de apaixonados. Depois, quando a deixou no carro, ela lhe deu rápido beijo e foi embora, despedindo-se, assim, como se despede de um estranho, em quem se esbarrou, na rua. Em casa, banho tomado, sentado à mesa do jantar, Helena questionou o silencio, o ar distante, que ele justificou pelos problemas do dia. Contrariando o hábito, ela foi dormir e ele se deixou ficar, sentado no sofá, olhar perdido, o rosto de Sabrina, os seios de Sabrina, as coxas de Sabrina e até o gosto intimo de Sabrina indo e vindo, cravando-lhe a culpa da traição imerecida, que o perseguiu, noite adentro. Se confessasse, Helena o perdoaria? Afinal fora apenas uma não querida transa com estranha pessoa, que não deixara marca. E, se Helena não o perdoasse, o que faria da vida, sem ela? Sábado, céu cinzento, foram, ele e sua culpa, correrem no Ibirapuera. Talvez, ali, entre as árvores, recebesse um sinal, indicando-lhe o que fazer. Na segunda volta, encontrou Virgílio, seu amigo de longa data. Tinham feito carreira no mesmo banco, passaram pelas mesmas dificuldades. Era alguém com quem podia abrir o peito, vomitar sua culpa e pedir sugestão. Virgilio já passara por dois casamentos, indo para o terceiro e, por certo, entendia destas coisas de traição e culpa.
- ‘’Virgílio, que bom que te encontrei! Aconteceu uma coisa terrível e não sei o que fazer.’’
- ‘’Fique tranqüilo, Henrique, já sei o que é. Não tome nenhuma medida precipitada. Na verdade, eu ia te contar, apenas achei que não devia me meter em sua vida. Mas, se você já sabe, conte comigo, que amigo é pra estas coisas.’’
Quase sem voz, ofegante e surpreso, apenas perguntou:
- ‘’Afinal, o que você sabe, Virgílio?’’
- ‘’Da Helena, sua esposa, que está transando com o Glauco, o diretor de RH do banco! Não é isto?’’
- ‘’Claro que é’’, respondeu Henrique, deixando Virgílio sozinho, estático, enquanto ele, como se fosse um robô, saía do parque. Esqueceu o carro e foi andando para casa, cabeça a mil, quase sendo atropelado, quando atravessava a avenida. Em casa, Helena guardava as compras do supermercado.
- ‘’Poxa, Henrique, por que você não me esperou para irmos ao parque? Nossa, você está pálido, aconteceu alguma coisa?’’
Ele, tremendo, abriu a geladeira, encheu o copo de suco, bebeu-o, vagarosamente, e perguntou:
- ‘’Helena, se você descobrisse que eu te traí, o que você faria?’’
- ‘’Acho que eu te matava, Henrique. Por quê? Você me traiu?’’
- ‘’Claro que não, apenas curiosidade’’, respondeu, indo para o quarto. Abriu, ao acaso, a Bíblia, colocada no criado mudo. Evangelho de Mateus: ‘’ouvistes que foi dito:

’olho por olho, dente por dente’’. Ora, eu vos digo: não ofereçais resistência ao malvado! Pelo contrário, se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda.’’ Fechou a Bíblia, foi até o armário, retirou o revolver de dentro de uma caixa, voltou à cozinha, Helena, de costas, guardava alguma coisa. Desferiu-lhe dois tiros e depois disparou contra a própria cabeça. Decididamente, não fora convincente a lição do evangelista. 

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