Aquela fora uma sexta-feira para ser esquecida. O frio,
cortante, chegara pra valer, escondendo as coxas torneadas em pesadas calças
compridas e casacos, ainda cheirando a guardado. Os rostos alegres foram
substituídos por semblantes taciturnos. A ida ao fórum fora inútil: os juízes
federais, ao contrário dos estaduais, recusam-se a receber advogados. Talvez se
julguem emissários de Deus. Camuflam, na arrogância, o seu pouco saber. A
reunião, que era para ser pacifico entendimento, quase se transformou em guerra
campal. Um de seus clientes preferidos – transformado em amigo afável – lutava,
bravamente, para sobreviver, a meio a uma economia, sem rumo. Não temos
governo: um, já morto, precisa ser sepultado, para que o outro se instale. Eram
seis da tarde, quando retornou ao escritório, lembrando-se de outras
sextas-feiras, quando, instalado na Faria Lima, tirava as tardes para passear
no ‘’Shopping Iguatemi’’, ou fazer sauna e massagem relaxante (sem sacanagem).
Planejara não mais trabalhar às sextas, quando batesse os 50 anos e, por algum
tempo, conseguiu seu intento, mas, como ninguém é condutor do próprio barco, as
circunstancias passaram a exigi-lo cada vez mais. Felizmente, o dia acabara.
Era deixar aquela papelada toda, apagar as luzes e ir para casa, fazer o que
mais gostava: brincar com seus cachorros, oferecendo-lhes o rosto, para ser
lambido e os braços, para serem mordidos, com carinho. Estava perdido nestes
pensamentos, quando, já na portaria, foi avisado que um parente o aguardava.
Parente, mas que parente o procuraria, às 6 da tarde de uma sexta-feira? Sentiu
uma pontada no estomago, sinal que má noticia vinha pela frente. Entrou no
escritório e apenas de passagem, olhou para o homem, sentado na sala-de-espera.
Devia ter em torno de 40 anos, magro, estatura mediana, cabelos pretos. A
fisionomia não lhe era estranha, mas não dava para associá-lo a qualquer
parente. Sua secretaria informou que ele não dissera o nome e que já fazia uma
hora, que esperava. Quando ele entrou, encaminhou-o à mesa de reunião, o que
foi prontamente recusado:
- ‘’se você não se
importa, prefiro o sofá, é mais informal.’’
Ele torceu o nariz. Odiava ser chamado de ‘’você’’, por pessoas desconhecidas. Era
pronome de tratamento, que se conquista. Mas lá estava o homem, já instalado no
sofá, cigarro aceso entre os dedos. Puxou a cadeira, sentou-se defronte e, após
alguns segundos de sepulcral silencio, iniciou o diálogo:
- ‘’poderíamos começar
nos apresentando e, depois, o senhor me diz em que lhe posso ser útil. Afinal,
qual nossa relação de parentesco?‘’
- ‘’até aceito que você
não me reconheça, afinal, quando nos vimos, pela ultima vez, você tinha 16
anos, tinha vindo estudar em São Paulo e estava fazendo vestibular. E eu já era
mais velho do que hoje’’.
Como aquele homem, até agora um estranho, sabia detalhes
longínquos de sua vida? E como alguém podia, hoje, ser mais jovem que ontem?
- ‘’Afinal – perguntei
– quem é o senhor e o que quer de mim?’’
Ele sorriu, levantou-se, dirigiu-se até a parede, onde tinha
vários posters de familiares e, apontando ao último à direita, apenas murmurou:
- ‘’estou aqui, você
não se lembra? Foi nosso ultimo natal.’’
A voz calou-lhe na garganta, o suor empapou-lhe a camisa e o
coração ameaçava pular pela boca. Aquele homem era seu pai, que, vendo sua aflição,
afagou seus ralos cabelos, prendeu suas mãos entre as dele, massageando-as,
suavemente. Minutos depois, quando percebeu que ele recuperava um mínimo de
lucidez, sentou-o a seu lado, no sofá e, sem desprender as mãos, falou:
- ‘’fique tão calmo,
quanto possível e preste atenção: na verdade era para eu levá-lo, hoje, agora,
daqui mesmo. Mas você sabe como é sua mãe. Com aquele jeitinho dela, pediu e
repediu e ele concordou em deixar você ficar mais um tempo, não mais que um
ano. Tempo para você arrumar suas coisas, receber aquele dinheiro que vai dar
segurança a sua família, pedir desculpas a uns e outros pelos erros e
ressentimentos, preparar-se, enfim, para a viagem definitiva. Quando chegar a
hora, eu voltarei para buscá-lo.’’
Atônito, quase sem voz, perguntou:
- ‘’e pra onde o senhor
vai me levar, ou melhor, pra onde eu vou?’’
- ‘’não sei, -
respondeu ele -. Levo você até certo ponto e, depois, você segue sozinho, por
outro caminho, que não conheço, nem sei onde vai dar. Aproveite o tempo, que
sua mãe conseguiu para você, para pensar e, se possível, redimir seus
erros.Confesso que esperava mais de você, mas não estou totalmente
decepcionado... Ah, outra coisa: não fale deste nosso encontro, nem para sua
mulher. E agradeça, todos os dias, a sua mãe, por esta prorrogação que ela
conseguiu para você. Agora, eu vou embora. Até qualquer hora.’’ E saiu, com
aquele seu passo miúdo e estático, enquanto ele apenas olhava o retrato na
parede, o pai, sentado à cabeceira da mesa. Nosso último natal. Será, também, o
próximo, seu último natal?
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