Se eu percorrer o ponto mais distante de minha memória, lá
encontrarei um cachorro, tantos os tive, vida afora e a todos dediquei – e
dedico – carinho e cuidados. Felizmente, minha esposa pensa e sente igual e talvez
tenha sido este amor pelos cães, um dos motivos que tem feito nosso casamento
perdurar por tanto tempo. Com a chegada de ‘’Clovis’’, vira lata preto, de
focinho branco, completamos oito cachorros. O que gastamos com ração, tapete
higiênico, banho e tosa, sem falar veterinário, daria para pagarmos a prestação
de um carro ‘’top’’ de linha. E daí? Nada substitui a alegria de nos ver
chegar, de rolar com eles no chão, de nos deixar morder, sem raiva. Na frente
da casa, ficam um pastor alemão, Rodolfo, e um vira lata de grande porte, Nara.
Quando saio para o trabalho, devidamente paramentado, eles apenas me saúdam com
o abanar das orelhas. Todavia, à noite, quando retorno, mesmo antes de sair do
carro, eles estão a pular na grade. Querem demonstrar o afeto, pulando em mim,
mordendo-me, gentilmente, as mãos, como se dissessem: - ‘’que bom que você
chegou!’’ Ao entrar em casa, ouço o uivar dos três, que protegem o fundo da
casa e que exigem minha presença. Olavo, o mais jovem dos três, a convidar-me
para o jogo de bola. Alías, sobre Rodolfo há uma peculiaridade, que merece ser
contada: todas as noites, mesmo com chuva, não importa que a madrugada já tenha
se instalado, ele só se recolhe depois de eu desejar-lhe, com palavras e
afagos, ‘’boa noite’’. Estabelecemos, eu e ele, um ritual que só terminará
quando um de nós se for. Mas, por que estou eu a falar de meus cachorros?
Porque, do outro lado da rua, uma casa foi transformada em ‘’hotel/creche’’
para cachorros. Comenta-se que a construção é irregular, porque ocupa quase
duas vezes a área do terreno, quando deveria ocupar, no máximo, 2/3. Comenta-se
que não tem alvará de funcionamento, já que, pelas posturas municipais, tal
tipo de estabelecimento não poderia funcionar em local, estritamente
residencial. Comenta-se que não possui alvará do Conselho Regional de Medicina
Veterinária. Como não sou fiscal da lei e abomino delação (premiada ou não), essas
irregularidades – mesmo em sendo verdadeiras – não são problema meu. O que
realmente me incomoda são os donos dos cachorros, que são deixados lá das oito
da manhã às oito da noite e, muita vez, por todo o fim-de-semana. Como a casa
não tem um mísero metro quadrado de área livre, são dezenas de animais,
confinados na área interna, a latir e a chorar, latidos e choros que me
atormentam, porque, como sei interpretá-los, são lamentos de tristeza, solidão
e angustia. Fico, então, a me perguntar: o que motiva esse tipo de gente a ter
cachorro. Para abandoná-lo, em uma creche, buscá-lo, à noite e, provavelmente,
em casa, isolá-lo, na área de serviço? Com certeza, fazem a mesma coisa com os
filhos, se é que os têm. É claro que ninguém é obrigado a ter animais, mas, se
os tem, exigem-se-lhes tratá-los com dignidade. Tenho orgulho das marcas que
carrego nos braços e nas pernas, deixadas pelos meus cachorros: são como beijos
que se perenizaram, lembranças que morrerão comigo. Morrerão? E, se houver
‘’vida além da morte’’ e eu me reencontrar com todos os cachorros que alegraram
meus dias? Vejo-me rolando no chão, sendo lambido e mordido por todos eles e eu
me farei de todas as idades, chamando cada um pelo nome e esticando meus braços
para delicioso e interminável abraço. Esperem-me, todos vocês, Tupã, Pink,
Babuska, Rufus, Bernardo, Ariela, Queen, Gringa, Tati, Judith, Kate, Dandara,
Freud, Tulio, Beja, Janete e tantos outros, suprimidos pela gasta memória,
porque estou chegando! Quanto a vocês, do outro lado da rua, órfãos de pais
vivos, entendo e sofro com seus ganidos. Lamento que vocês tenham sido
escolhidos por quem os imagina como simples adorno. Na verdade, são eles
verdadeiros animais, no pior sentido do termo.
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