Era seu amigo de longa data. Desses amigos com quem se
dividem intimidades, risos e lágrimas. Seus últimos anos foram de decadência
física e moral. O corpo padecia de vários males e a alma se despedaçara, desde
que ela se fora, deixando duas linhas escritas em papel amassado, que ele
carregava consigo, exibindo-o, como troféu, após a quinta dose de uísque,
proibido que estava de beber. Deixou de tomar remédios e, quando questionado,
dizia que perdera o sentido da vida. Dos amigos sobrara-lhe apenas ele, Luiz
Claudio, que o ouvia, sem condená-lo, em eloqüente silencio. Um dia, ele ligou.
Precisava falar com urgência. Luiz Claudio estranhou o lúgubre local do
encontro: a porta do velório do cemitério do Araçá, mas, seguindo seu hábito,
nada perguntou. Encontrou-o, cigarro na mão, andando de um lado para outro.
Quem passasse, por certo, imaginaria que ali estava um homem triste, prestes a
enterrar ente querido. Sem dizer nada, tomou Luiz Claudio pelo braço, entraram
pela porta lateral, que dava acesso ao cemitério e foram caminhando pela
alameda, ladeada de túmulos, que terminava lá na Cardoso de Almeida. Luiz
Claudio sempre achou incongruência o cemitério ficar defronte à Faculdade de
Medicina e ao Hospital. Como se o primeiro dissesse: - ‘’não adianta, eu acabo sempre vencendo’’. Como o amigo continuava
mudo, Luiz Claudio passou a reparar na beleza dos túmulos e comparar a idade
dos mortos com a sua. Imaginou um placar de 20 e, satisfeito, concluiu que
vencera de 14 a 6. Após passarem pela pequena Igreja, que dava para o portão
central, o amigo puxou-o pelo braço e entraram numa viela, à direita. Alguns
túmulos depois, pararam diante de uma capela, que era o jazigo da família do
amigo. Sem anjos, Cristos ou Madalenas, mas bem cuidada, com fotos de mortos,
que passaram por ali. Só então o amigo quebrou o silêncio: ‘’se você levantar esta tampa de mármore, sob nossos pés, vai encontrar
uma espécie de treliche, um de cada lado, onde os caixões são colocados. Quero
que o meu seja colocado no espaço do meio, à esquerda. Conto com você que é a
única pessoa em que confio.’’ Ontem, toca o telefone. Era a esposa avisando
que o amigo morrera, o velório seria no Araçá e o enterro, amanhã, (hoje) às 11
horas. Tudo muito rápido, filhos e esposas sem lágrimas, quase aliviados. Desconhecidos
conversavam, alegremente, na varanda que dava para o estádio do Pacaembu.
Quando o féretro saiu, Luiz Claudio apressou-se, à frente. Tinha uma missão a
cumprir. No local do sepultamento, dois coveiros removiam as placas de mármore.
Luiz Claudio colocou uma nota de 50 reais nas mãos de cada um deles, indicando
o local onde o caixão deveria ser colocado. Depois, esperou o cortejo chegar e
o corpo do amigo repousou, exatamente onde planejara. Luiz Claudio não esperou
pelo fim do ritual. Caminhou, vagarosamente, em direção da saída, imaginando
que aquele cemitério poderia ser transformado em magnífico condomínio de
prédios.
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