sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Pela virada do ano

Na contra-mão dos que se dirigiam à Praia de Copacabana, para assistirem à magnífica queima de fogos da meia-noite, Luiz Claudio caminhava pela ‘’Francisco Otaviano’’, em direção ao Arpoador. Trazia consigo um isopor, contendo pedras de gelo, copo, e, na outra mão, uma garrafa de uísque, sempre da mesma marca, ‘’Old Parr’’. Era a sua maneira de homenagear o falecido pai, que só consumia aquela marca de uísque. Não sabia bem porque assim agia. Afinal seu pai se fora, quando ele, Luiz Carlos, era ainda jovem e a relação entre ambos não guardava tanta intimidade para conversas profanas, como bebida. Mas ele conservava a lembrança do pai, bebericando, suavemente, ‘’Old Parr’’. Passou a tomar desse uísque, apenas em ocasiões especiais e, aquela virada de ano, era pra lá de especial. Estava definitivamente velho para acreditar que tudo pudesse renascer, apenas porque virara a página do calendário. Não tinha projetos para o novo ano e sabia que os fatos a estes se superpõem. Maria Clara se fora, do mesmo modo que os filhos, de repente, não mais suportando suas alternâncias de humor, sua maneira irresponsável de levar a vida. Não que se sentisse irresponsável: tinha seu trabalho, que lhe supria as necessidades básicas; procurava respeitar o próximo, mesmo mantendo com ele confortável distancia e não se lembrava de ter prejudicado qualquer pessoa. Se não era homem de grandes virtudes, também não se sentia atormentado pelos chamados ‘’pecados mortais’’. Enfim: julgava-se preparado para o juízo final. Mas, naqueles últimos minutos de 31 de dezembro, o que queria mesmo é estar ali, sentado na pedra do Arpoador, brindando, ele com ele, o exuberante brilho das estrelas e o quebrar suave das ondas. O mar estava calmo e, aqui e ali, podia-se ver alguns surfistas, à espera de ondas que não viriam. Solitários? Por certo, não! Apenas optaram por passarem a virada no ambiente que os acolheu, por todo o ano. Como ele, intimo daquela pedra, de suas escarpas e ranhuras, a quem procurava para ouvi-la, em suas grandes decisões. Fora ali, numa ventania de setembro, que decidira deixar livre o caminho de Maria Clara. A verdade é que, de tanto usar, gastaram o casamento, passando a viver de migalhas de carinho. Pouco tempo depois, surgiu Carolina, com o alvoroço próprio da juventude, todas as coisas ao mesmo tempo. Era linda, espiando-o, com ardor, envolvendo-o com suas longilíneas coxas torneadas. Mas ele queria mais, ou melhor, nada queria, porque o cheiro de Maria Clara, o gosto de Maria Clara ainda exalava-lhe pelos poros. Todavia, não foi por ela ou por qualquer outro motivo que, apenas acompanhado do velho ‘’Parr’’, refugiou-se na pedra do Arpoador, esperando o surgir de um novo ano. Queria, apenas, estar consigo mesmo, alheio ao barulho, deixando que seus pensamentos alçassem vôo para o destino que bem lhes aprouvesse. Porisso, sentiu-se visivelmente incomodado quando aquele senhor, vestindo branco, rosto ornamentado por espessa barba branca, sentou-se a seu lado.
‘’Incomodo?“, perguntou ele.
‘’Muito’’, respondeu Luiz Claudio.
’Mas, mesmo assim, vou ficar, afinal a pedra é de todos’’.
Luiz Claudio olhou-o de soslaio, com certo olhar de desprezo e despejou mais uísque, no copo.
- ‘’Não me oferece?’’, perguntou o velho.
- ‘’Por que o faria? Não o conheço e sua presença quebra a paz que vim buscar aqui. Afinal, quem é o senhor e o que realmente quer?’’
- ‘’Vou revelar minha secreta identidade: eu sou o ano que termina, a quem costumam chamar ‘’ano velho’’. Sou o responsável pelo fracasso de quem não conquistou o sucesso; sou o desamor dos abandonados pela paixão; sou o desespero dos acometidos por doenças definitivas; sou, enfim, o renegado que todos querem que se vá, contando os segundos para a partida, porque esperam que meu substituto, o novo, traga o amor, a paz, a saúde e o dinheiro. Você também crê que o novo sempre vence?’’
Luiz Claudio deu um longo e estudado gole no uísque, que enchia o copo, voltou a enchê-lo, ofereceu ao velho e só então falou:
- ‘’Os meus sonhos e ilusões foram sendo enterrados com o tempo, que nada muda, obsoleta lanterna de popa que, inutilmente, apenas ilumina para trás. O novo, o futuro é, sempre, a escuridão, que nos reserva incertezas, cujo rumo não conseguimos alterar: virá, do jeito que tiver que vir e a nós, impotentes, só nos resta esperar para vivê-lo. Porisso prefiro comemorar o passado: posso escolher os bons momentos vividos e deletar os maus, é apenas saber separá-los. É exatamente isto que faço sentado nesta pedra, onde vivi um grande amor. Se ele, o amor, desapareceu, isto não importa, porque o que existiu, sempre continuara existindo, como essas estrelas que, mesmo encobertas pelas nuvens, continuam brilhando, mesmo que não as possamos ver.’’

Erguendo o copo, que trazia às mãos, o desconhecido sorriu para Luiz Claudio e apenas murmurou: ‘’então, feliz ano velho’’, enquanto fogos de artifício enfeitavam os céus, anunciando... 

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