Na contra-mão dos que se dirigiam à Praia de Copacabana, para
assistirem à magnífica queima de fogos da meia-noite, Luiz Claudio caminhava
pela ‘’Francisco Otaviano’’, em direção ao Arpoador. Trazia consigo um isopor,
contendo pedras de gelo, copo, e, na outra mão, uma garrafa de uísque, sempre
da mesma marca, ‘’Old Parr’’. Era a
sua maneira de homenagear o falecido pai, que só consumia aquela marca de
uísque. Não sabia bem porque assim agia. Afinal seu pai se fora, quando ele,
Luiz Carlos, era ainda jovem e a relação entre ambos não guardava tanta
intimidade para conversas profanas, como bebida. Mas ele conservava a lembrança
do pai, bebericando, suavemente, ‘’Old
Parr’’. Passou a tomar desse uísque, apenas em ocasiões especiais e, aquela
virada de ano, era pra lá de especial. Estava definitivamente velho para
acreditar que tudo pudesse renascer, apenas porque virara a página do
calendário. Não tinha projetos para o novo ano e sabia que os fatos a estes se
superpõem. Maria Clara se fora, do mesmo modo que os filhos, de repente, não
mais suportando suas alternâncias de humor, sua maneira irresponsável de levar
a vida. Não que se sentisse irresponsável: tinha seu trabalho, que lhe supria
as necessidades básicas; procurava respeitar o próximo, mesmo mantendo com ele
confortável distancia e não se lembrava de ter prejudicado qualquer pessoa. Se
não era homem de grandes virtudes, também não se sentia atormentado pelos
chamados ‘’pecados mortais’’. Enfim:
julgava-se preparado para o juízo final. Mas, naqueles últimos minutos de 31 de
dezembro, o que queria mesmo é estar ali, sentado na pedra do Arpoador,
brindando, ele com ele, o exuberante brilho das estrelas e o quebrar suave das
ondas. O mar estava calmo e, aqui e ali, podia-se ver alguns surfistas, à
espera de ondas que não viriam. Solitários? Por certo, não! Apenas optaram por
passarem a virada no ambiente que os acolheu, por todo o ano. Como ele, intimo
daquela pedra, de suas escarpas e ranhuras, a quem procurava para ouvi-la, em
suas grandes decisões. Fora ali, numa ventania de setembro, que decidira deixar
livre o caminho de Maria Clara. A verdade é que, de tanto usar, gastaram o
casamento, passando a viver de migalhas de carinho. Pouco tempo depois, surgiu
Carolina, com o alvoroço próprio da juventude, todas as coisas ao mesmo tempo.
Era linda, espiando-o, com ardor, envolvendo-o com suas longilíneas coxas
torneadas. Mas ele queria mais, ou melhor, nada queria, porque o cheiro de
Maria Clara, o gosto de Maria Clara ainda exalava-lhe pelos poros. Todavia, não
foi por ela ou por qualquer outro motivo que, apenas acompanhado do velho ‘’Parr’’, refugiou-se na pedra do
Arpoador, esperando o surgir de um novo ano. Queria, apenas, estar consigo
mesmo, alheio ao barulho, deixando que seus pensamentos alçassem vôo para o
destino que bem lhes aprouvesse. Porisso, sentiu-se visivelmente incomodado
quando aquele senhor, vestindo branco, rosto ornamentado por espessa barba
branca, sentou-se a seu lado.
‘’Incomodo?“,
perguntou ele.
‘’Muito’’,
respondeu Luiz Claudio.
‘’Mas, mesmo assim, vou
ficar, afinal a pedra é de todos’’.
Luiz Claudio olhou-o de soslaio, com certo olhar de desprezo
e despejou mais uísque, no copo.
- ‘’Não me oferece?’’,
perguntou o velho.
- ‘’Por que o faria?
Não o conheço e sua presença quebra a paz que vim buscar aqui. Afinal, quem é o
senhor e o que realmente quer?’’
- ‘’Vou revelar minha
secreta identidade: eu sou o ano que termina, a quem costumam chamar ‘’ano
velho’’. Sou o responsável pelo fracasso de quem não conquistou o sucesso; sou
o desamor dos abandonados pela paixão; sou o desespero dos acometidos por
doenças definitivas; sou, enfim, o renegado que todos querem que se vá,
contando os segundos para a partida, porque esperam que meu substituto, o novo,
traga o amor, a paz, a saúde e o dinheiro. Você também crê que o novo sempre
vence?’’
Luiz Claudio deu um longo e estudado gole no uísque, que
enchia o copo, voltou a enchê-lo, ofereceu ao velho e só então falou:
- ‘’Os meus sonhos e
ilusões foram sendo enterrados com o tempo, que nada muda, obsoleta lanterna de
popa que, inutilmente, apenas ilumina para trás. O novo, o futuro é, sempre, a
escuridão, que nos reserva incertezas, cujo rumo não conseguimos alterar: virá,
do jeito que tiver que vir e a nós, impotentes, só nos resta esperar para
vivê-lo. Porisso prefiro comemorar o passado: posso escolher os bons momentos
vividos e deletar os maus, é apenas saber separá-los. É exatamente isto que
faço sentado nesta pedra, onde vivi um grande amor. Se ele, o amor,
desapareceu, isto não importa, porque o que existiu, sempre continuara
existindo, como essas estrelas que, mesmo encobertas pelas nuvens, continuam
brilhando, mesmo que não as possamos ver.’’
Erguendo o copo, que trazia às mãos, o desconhecido sorriu
para Luiz Claudio e apenas murmurou: ‘’então,
feliz ano velho’’, enquanto fogos de artifício enfeitavam os céus,
anunciando...
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