sexta-feira, 12 de junho de 2015

O aborto literário

Já tinha escrito várias páginas sobre o novo livro. Era para ser um conto de poucas palavras, mas a historia me pareceu valer um livro. Historia de um homem que para de envelhecer aos 30 anos e se eterniza em vigor físico e mental. E vê passar gerações, mudar usos e costumes. Amigos envelhecem e morrem, mulher e filhos envelhecem e morrem e ele, ali, firme e forte, com seus 30, mesmo com sua carteira de identidade mostrando a realidade dos 70, 80, 90, 100 anos. Imaginei-o aos 110 correndo, no Parque do Ibirapuera ou no calçadão de Copacabana e olhado com cupidez (que palavra, Deus meu!) pelas moças que vêm, sem sentido contrario. Recostei na cadeira para melhor visualizar a cena. Assim, poderia descrevê-la com mais precisão. Tentei sentir a angustia de suas perdas cotidianas e compará-las com o ganho da descoberta, não buscada, da ‘’fonte da juventude’’. Mais ganhos ou mais perdas? Entusiasmo-me com a idéia e solto a imaginação, que corre mais veloz que a escrita. Querendo dividir minha euforia, ligo para uma amiga, viajada em livros e anuncio, quase aos gritos, meu achado. Ela me ouve, por incontáveis minutos, em sepucral silencio. Termino e aguardo seus comentários. Na reticência de sua voz, antevejo tempestade... que chega. Informa-me ela, em sua habitual gentileza, que a idéia é boa, mas não é original. E me remete a um autor francês (Nicolas qualquer coisa), que desenvolveu tema idêntico. Ela, mesmo do lado invisível, percebe minha decepção e tenta me reanimar, dizendo que, contando a historia de outra forma, com certeza seria diferente. Mas sei que não seria, porque seria a mesma historia. Desligo o telefone e sento no sofá, amargando a frustração de ter perdido o inusitado. Não li o livro do ‘’Nicolas não sei o que’’, mas agora sei que ele existe. Recolho as folhas escritas, dobro-as, simetricamente, rasgo-as e as atiro ao lixo. Acabei de, para felicidade de todos, fazer um aborto literário. 

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