segunda-feira, 8 de junho de 2015

Miguel, o mestre



Finalmente, após 02 anos de idas e vindas, saíra a sentença de Miguel (chamêmo-lo) pelo codinome). Conheci-o, lá já vão 05 ou mais anos na feira de artesanato, do Largo de Moema, atrás da Igreja de Nossa Senhora Aparecida, por onde passo aos domingos, para cumprimentar a Santa, que integra o rol dos meus protetores. A feira já foi bem maior, mas encolheu com as obras do metrô, já que a estação ficará instalada em parte da praça. No espaço encolhido, os artesãos expõem seus produtos e no lado direito de quem desce, ficam os quadros de pintores amadores. Sempre fui ‘’fissurado’’ em feiras de artesanato e os quadros, ainda hoje pendurados em minha sala, eu os adquiri, no começo dos anos 70, na Praça General Osorio, no Rio. Aqui, volta e meia, percorro, aos domingos, a Praça da Republica, onde se encontra de tudo, inclusive uma barraca de comida baiana de fazer salivar. Mas, voltemos ao ‘’nosso’’ Miguel. Em um dos domingos, a meio a quadros abstratos – que não fazem minha cabeça – deparei com a pintura do rosto de uma velhíssima senhora, de cujo olho esquerdo pendia uma lagrima. A expressão de tristeza, naquele olhar, era tão intensa, que me emocionei. Quantos minutos fiquei parado, defronte aquele quadro, não sei, mas o suficiente para que seu autor parasse a meu lado:
- ‘’gostou’’?, perguntou-me ele, com forte sotaque espanhol. – ‘’muito!’’ E destaquei a expressão da velha senhora, de sua pele enrugada e da lágrima que pendia do olho. Ele me disse o preço e, mesmo parcelado em algumas vezes, estava fora de minhas prioridades financeiras. Não saiu negocio, mas engrenamos um papo gostoso, que se encerrou com um café, no botequim do outro lado da rua. E, assim, por sucessivos domingos, durante quase um ano, tornou-se obrigatória a parada, junto à ‘’exposição’’ de Miguel. Nossa conversa ficou mais intima e ele me fez um resumo de sua vida. Passava dos 60 e desde os 20 era, o que se auto-dominava, ‘’artista andarilho’’, percorrendo as principais cidades do mundo, mostrando sua incipiente arte. Imaginou, um dia, ser pintor de fama internacional, com grandes exposições, mas as necessidades cotidianas transformaram-no em expositor de rua. Atualmente, morava em uma quitinete, na rua dos Gusmões, ali no coração da ‘’boca do lixo’’ e seu veículo, onde carregava suas obras, era uma ‘’variant’’, 1980. Fora casado (na expressão larga do termo) 3 vezes, casamentos sem paixão, que duraram o ‘’tempo de uma flor’’, como costumava dizer. Estava no Brasil há 10 anos e já não se sentia com disposição para mudar de ponto. O que vendia, aos domingos, bebia durante a semana. Contava-me tudo isto, sem ressentimento. ‘’Seguimos o caminho, que o destino prepara para nós e ninguém muda este caminho’’, dizia-me. Respeitava minha credulidade, mas não acreditava nela: - ‘’você vem a esta Igreja por medo de existir outra vida e ser punido pelos seus erros. Duvido que você tenha amor desinteressado por Deus e por esses santos que você traz pendurado no pescoço!’’ Eu ria e lá íamos nós tomar o café de despedida.
Um domingo e outro e vários outros não encontrei o Miguel. Perguntei a seus colegas e ninguém sabia dele. Simplesmente sumira, envolto no mesmo mistério que o trouxera, até aquela praça. Já tinha esquecido dele, quando, mais de um ano depois, a secretaria avisa-me pelo interfone: ‘’um amigo seu, que se chama Miguel e é pintor, está ao telefone’’. Atendo-o, com incontida alegria e ele, voz soturna e sem preâmbulos, avisa-me que está em uma enrascada, precisa de um advogado e, vasculhando papeis, encontrou meu cartão. Como dizia ser urgente, marcamos entrevista para o final do mesmo dia. Já eram quase 18 horas, quando Miguel chegou a meu escritório, surpreendentemente bem vestido: calça jeans, bem cortada, camisa sob medida e blazer, com etiqueta internacional. Elogiei-lhe a elegância e cobrei-lhe o sumiço. ‘’Ajudei o destino a mudar meu caminho’’, respondeu-me ele. Não demoramos mais do que 5 minutos a falar generalidades, tempo suficiente para ele criticar as gravuras que enfeitam minha sala. Miguel foi direto ao assunto. Cansado de viver de trocados e sabedor de sua competência, engendrou um plano fantástico: passou a reproduzir, inclusive assinaturas, de pintores consagrados, cujas telas alcançavam preços astronômicos no mercado de artes. Conseguira se infiltrar, principalmente entre ‘’novos ricos’’, a quem oferecia, por cerca de 20 por cento do valor real, aquelas telas famosas. A ausência de certificado de autenticidade, alegava que os quadros eram produtos de furto em residências de milionários e apreendidas por agentes policiais que os vendia a ele, Miguel, sem identificar a vitima do furto. Assim, em menos de um ano, vendeu, como originais, quadros de pintores consagrados, como Henrique Bernadelli, Benedito Calixto, Henrique Cavalleiro, Guignard, Eugenio Latour, Roberto Fontana, Quinet e uma ‘’madona’’, como sendo de Guido Reni, importante pintor italiano do século XVII. Nesse curto espaço de tempo, faturou quase 03 milhões. Seu atelier, onde reproduzia aquelas telas, agora estava instalado numa confortável casa, que possuía, inclusive, câmara de ‘’envelhecimento’’ das telas, situada numa tranqüila rua do bairro das Perdizes. Sua casa ‘’caiu’’, ao vender, como original,uma obra de Henrique Bernadelli, denominada ‘’a leitura’’, datada do começo do século. Avaliada em 03 milhões de reais, fora vendida a um fazendeiro do Espírito Santo por 150 mil. Acontece que o tal fazendeiro possuía uma filha, que cursava Belas Artes, no Rio e não precisou de muito tempo para descobrir que se tratava de reprodução. Como Miguel se recusara a devolver o dinheiro, instaurou-se, contra ele, processo por crime de estelionato. –‘’E por que você não devolveu o dinheiro, Miguel? Se o tivesse feito, nem mesmo haveria processo, que teria sido arquivado, no nascedouro’’, expliquei-lhe. –‘’Porque, se o original vale 03 milhões, o meu, que está igual ao original, vale até mais que os 150 mil que recebi..’’ Raciocínio, esteticamente lógico, mas, no plano jurídico, não absolvia Miguel. Peguei o seu caso, fizemos algumas audiências e, àquela altura, eu só tinha dois caminhos: manter a versão de que Miguel adquirira o quadro como original e assim o passara para a frente, ou confessar a falsificação e devolver o dinheiro recebido. Provavelmente, nenhuma das alternativas livraria Miguel de uma condenação, mas a segunda, além de mais ética, poderia sensibilizar a juíza a aplicar pena mais branda. Discuti com Miguel meu ponto-de-vista, mas ele foi inflexível: devolver do dinheiro, jamais. Seu trabalho fora perfeito e valia muito mais do que recebera. –‘’Além do mais, meu caro (argumentou-me ele), eu não falsifico quadros, eu os reproduzo. Se eles, ricos ignorantes, consultassem qualquer catalogo de artes, veriam que ‘’a leitura’’não está à venda e se encontra exposta no ‘’Museu do Prado’’. Achei seu argumento definitivo e, através dele, construí a defesa de Miguel. Se, pelo nosso Código Penal, o estelionato ocorre quando a vítima é ‘’induzida a erro’’, não houve induzimento e, se houve alguém que quis ‘’obter vantagem indevida’’, foi o fazendeiro, ao comprar por 150 mil uma tela, que valia 3 milhões. Na audiência de interrogatório, Miguel deu um show de simpatia, inteligência e cultura. Percebi que impressionara a juíza que, mesmo sem se convencer da inocência dele, seria branda, na aplicação da pena. E o foi: condenou-o à pena mínima – 01 ano -, convertida em prestação de serviços à comunidade, consistente a, aos domingos, durante um ano, ensinar desenho aos adolescentes, em uma favela de São Paulo. Comuniquei o resultado a Miguel, dizendo-lhe que iria recorrer da sentença. Ele ficou eufórico com a decisão judicial, não quis recorrer e já está organizando um grupo de jovens carentes, a quem, como diz, ‘’vou ensinar a navegar nas tintas de Michelangelo’’. Adverti Miguel: ‘’agora, você precisa parar com essas falsificações’’ e passei a lhe explicar as conseqüências jurídicas da reincidência. Ele riu, com seu sorriso largo: -‘’agora, mais que nunca, preciso continuar. Vou criar uma escola de arte gratuita para jovens favelados e quem vai pagar a conta são esses milionários ignorantes, que querem obras de arte, apenas para se exibirem para seus amigos.’’

‘’- A propósito: estou pintando outra velha triste, igual aquela que você gostou, quando nos conhecemos. Será um presente meu. Que pintor famoso você quer que eu assine?’’ Demos sonora gargalhada e eu respondi: ‘’- assine, Miguel, o mestre!’’

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