terça-feira, 23 de agosto de 2016

De surpresas o cotidiano é feito



Formávamos um grupo de sete homens passados dos 60, com exceção do Gustavo, ainda na casa dos 40. Encontrávamos no portão do Parque do Ibirapuera, que dava para a Avenida IV Centenário, por volta das 5 da manhã – às 6, no horário de verão – e corríamos, duas vezes, o anel interno do parque, coisa de 8 quilômetros, sempre no sentido horário. Até um ano atrás, fazíamos o percurso em 50 minutos, mas o infarto do Benício, fez-nos cair na real e diminuímos o ritmo, 01 hora estava de bom tamanho. Aquele era o horário dos profissionais ou dos que, como nós, faziam da corrida m ritual. Ainda escuro, víamos silhuetas de pessoas e o sol, surgindo entre as árvores, era espetáculo que impunha silêncio e reverência. Tínhamos uma regra, severamente observada: era proibido falar de problemas pessoais e de trabalho. Após a corrida, era tomar o café-da-manhã, naquela padaria de Moema e cada qual procurar seu caminho. Foi numa manhã chegante de primavera, verão já acenando, que ela se aproximou: ainda escuro, tinha receio de correr sozinha. Queria se juntar a nós. Concordamos, mais por educação do que por prazer, pois, a partir dali, nossas conversas seriam auto-censuradas. Dizia chamar-se Viviane, mas podia ser chamada de ‘’Vivi’’ que era como todos a tratavam. Viera, fazia pouco tempo, do Espírito Santo, daí seu sotaque, meio carioca, meio baiano. Seu jeito um pouco afetado passou-nos a impressão de ser mulher sofisticada. Morena, corpo esguio, lembrava modelo não esquelética, uma Gisele Buchen, sem esplendor. Pouco falava e, quando ria, apenas ria, não gargalhava. Dava apenas uma volta e saía pelo portão da ‘’República do Líbano’’. Era quando Gustavo monopolizava a conversa: só falava em Vivi – ‘’que mulher fantástica: não atropela nossas conversas e mesmo quando discorda o faz meigamente, como se pedisse desculpa. Que diferença da minha ex, a criticar minhas idéias, qualquer uma. Com o tempo, entendi que ela não tinha opinião própria, que sua opinião era ser contra a minha. Que bom que me livrei daquele traste’’. E, falando alto, em tom dramático, mas arrancando gargalhadas, poetava: ‘’ai, Vivi, meu coração bate por ti’’. Após um desses rompantes matinais, sugerimos que ele se abrisse com ela. Afinal, com 40 e poucos era o único que podia investir em uma mulher, que ainda não chegara aos 30. – Dizia ela ter 27 -. Um dia, Gustavo encheu-se de coragem. Não podia mais ‘’sufocar esta paixão que me tira o sono’’ e acompanhou Vivi, na saída dela. Acho que ela já esperava, ou, até ansiava pela abordagem, pois sorriu, quando Gustavo disse que precisava falar-lhe. Seguimos nossa corrida, ansiosos pelo dia seguinte. Gustavo conquistaria Vivi, ou perderíamos nossa companheira? Ao passarmos pelo portão da República do Líbano, em nossa última volta, vimos Gustavo, cabeça baixa entre as mãos, sentado em um banco. Teria levado um fora? Estaria passando mal? Corremos até ele, preocupados. Ao sentir nossa presença, ergueu os olhos e, em voz fúnebre, revelou ‘’Vivi é ‘’traveco’’! Ela – ou ele – nunca mais apareceu no parque. 

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