terça-feira, 30 de agosto de 2016

Considerações particulares e públicas

Recebo a visita de cliente, que se tornou amigo queridíssimo. Estamos juntos já lá vão 20 anos, pelejando as mais diferentes batalhas. No momento, enfrentamos uma nova: o inventario de sua esposa, falecida após dois anos de intenso sofrimento, período doloroso em que ele foi, com extrema dedicação, pai, amigo, marido e enfermeiro. Algumas vezes, naquela época, passava por aqui, apenas para um bate papo. A tristeza estava em seus olhos marejados, mas jamais ouvi dele palavra de revolta. Preocupava-se em estar bem, não por ele, mas porque sabia que precisava servir a ela e servi-la, naquele momento, era sua razão de viver. O apoio dos filhos – doces filhos – ajudaram-no na travessia. Agora, enfrentamos a burra burocracia do inventário que seria mais rápido se fosse feito em cartório, já que os filhos são maiores e não há discrepância quanto à divisão dos bens. Acontece, porém, que os cartórios somente podem lavrar a competente escritura, se o imposto de transmissão, a ser recolhido, incidir sobre o “valor venal de referencia”, o qual é substancialmente superior ao valor venal, lançado pela municipalidade. Enquanto este baseia-se em dados concretos (área do terreno, área construída), aquele é absolutamente empírico, fundamentando-se em uma hipotética valorização para a qual a Prefeitura em nada contribuiu. O “valor venal de referencia” é fruto da ganância arrecadadora do Poder Público que, quanto mais arrecada, piores serviços oferece à população. Pergunta-me o querido amigo quem nos socorre destas aberrações administrativas. Fica, como único e último abrigo, o Poder Judiciário que, neste caso específico, entende que a base de cálculo do ITCMD é o valor venal do imóvel e não o valor de referencia que, por ter sido criado por simples decreto, portanto, à revelia do Poder Legislativo, ofende ao principio da legalidade. Burlar a lei, em prejuízo do contribuinte e ultrapassando a competência do Legislativo, passou a ser regra na Administração Pública. Ontem, assistindo a um debate, no programa “Roda Viva” da TV Cultura, vi, estarrecido, um debatedor, qualificado como professor de direito, manifestando-se contrário ao “impeachment”, afirmar que, confirmado o afastamento da presidente Dilma, por crime de responsabilidade, inúmeros Prefeitos e Governadores, por terem a mesma conduta, correm o risco real de também o serem. Justifica-se, assim, o crime, pela importância do criminoso, o que nos afasta do conceito de Pais civilizado. Mas, voltando ao assunto anterior, eu e meu amigo ficamos a nos indagar como fica o cidadão comum que, por desinformação ou por impossibilidade financeira, não pode contratar advogado para defender seus interesses. Simplesmente, não fica!
Quantos trabalhadores, afastados por problemas de saúde, mesmo recuperados, aguardam por 60 dias ou mais, agendamento de pericia do INSS para voltarem ao trabalho? Qual a justificativa lógica que impeça que tal pericia não possa ser realizada pelo médico da propria empresa? A dívida tributária, mediante simples lançamento unilateral, pode ser levada a protesto e levar a registro negativo o nome do contribuinte. E se tal débito for, no todo ou em parte, indevido? A Receita Federal e até a Autoridade Policial pode, sem autorização judicial, invadir a conta bancária do particular, ao qual resta, após a lesão sofrida, buscar a reparação da mesma junto ao Poder Judiciário. Retornamos à questão anterior: e quem não pode contratar um advogado ou nem mesmo tem informação de seu direito? Perdeu-se a noção de que “servidor público” é aquele que “seve ao povo” e o desprezo, quando não a prepotência é a conduta típica desse “servidor”. Não sei quantas gerações passarão até que o Brasil se transforme em um País onde haja respeito ao direito, nas relações entre Estado e Cidadão. Visito Rousseau, em sua obra “Contrato Social”, publicada em 1762: “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda força comum a pessoa e os bens de cada associado e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça senão a si mesmo e permaneça tão livre como anteriormente”. Duzentos e cinquenta e quatro anos passados, essa lição não foi aprendida e nós, cidadãos, continuamos escravos de um Estado arbitrário e corrupto.
Por falta de alternativa – e de tempo – eu e meu amigo encerramos nossa inútil conversa e nos despedimos afetuosamente. Ficou o acre gosto que fazemos parte de uma geração perdida.

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