Recebo a visita de cliente, que se tornou amigo queridíssimo.
Estamos juntos já lá vão 20 anos, pelejando as mais diferentes batalhas. No momento,
enfrentamos uma nova: o inventario de sua esposa, falecida após dois anos de
intenso sofrimento, período doloroso em que ele foi, com extrema dedicação,
pai, amigo, marido e enfermeiro. Algumas vezes, naquela época, passava por
aqui, apenas para um bate papo. A tristeza estava em seus olhos marejados, mas
jamais ouvi dele palavra de revolta. Preocupava-se em estar bem, não por ele,
mas porque sabia que precisava servir a ela e servi-la, naquele momento, era
sua razão de viver. O apoio dos filhos – doces filhos – ajudaram-no na
travessia. Agora, enfrentamos a burra burocracia do inventário que seria mais
rápido se fosse feito em cartório, já que os filhos são maiores e não há discrepância
quanto à divisão dos bens. Acontece, porém, que os cartórios somente podem
lavrar a competente escritura, se o imposto de transmissão, a ser recolhido,
incidir sobre o “valor venal de
referencia”, o qual é substancialmente superior ao valor venal, lançado
pela municipalidade. Enquanto este baseia-se em dados concretos (área do
terreno, área construída), aquele é absolutamente empírico, fundamentando-se em
uma hipotética valorização para a qual a Prefeitura em nada contribuiu. O “valor venal de referencia” é fruto da ganância
arrecadadora do Poder Público que, quanto mais arrecada, piores serviços
oferece à população. Pergunta-me o querido amigo quem nos socorre destas
aberrações administrativas. Fica, como único e último abrigo, o Poder
Judiciário que, neste caso específico, entende que a base de cálculo do ITCMD é
o valor venal do imóvel e não o valor de referencia que, por ter sido criado
por simples decreto, portanto, à revelia do Poder Legislativo, ofende ao
principio da legalidade. Burlar a lei, em prejuízo do contribuinte e
ultrapassando a competência do Legislativo, passou a ser regra na Administração
Pública. Ontem, assistindo a um debate, no programa “Roda Viva” da TV Cultura, vi, estarrecido, um debatedor,
qualificado como professor de direito, manifestando-se contrário ao “impeachment”, afirmar que, confirmado o
afastamento da presidente Dilma, por crime de responsabilidade, inúmeros Prefeitos
e Governadores, por terem a mesma conduta, correm o risco real de também o
serem. Justifica-se, assim, o crime, pela importância do criminoso, o que nos
afasta do conceito de Pais civilizado. Mas, voltando ao assunto anterior, eu e
meu amigo ficamos a nos indagar como fica o cidadão comum que, por
desinformação ou por impossibilidade financeira, não pode contratar advogado
para defender seus interesses. Simplesmente, não fica!
Quantos trabalhadores, afastados por problemas de saúde,
mesmo recuperados, aguardam por 60 dias ou mais, agendamento de pericia do INSS
para voltarem ao trabalho? Qual a justificativa lógica que impeça que tal
pericia não possa ser realizada pelo médico da propria empresa? A dívida
tributária, mediante simples lançamento unilateral, pode ser levada a protesto
e levar a registro negativo o nome do contribuinte. E se tal débito for, no
todo ou em parte, indevido? A Receita Federal e até a Autoridade Policial pode,
sem autorização judicial, invadir a conta bancária do particular, ao qual
resta, após a lesão sofrida, buscar a reparação da mesma junto ao Poder
Judiciário. Retornamos à questão anterior: e quem não pode contratar um
advogado ou nem mesmo tem informação de seu direito? Perdeu-se a noção de que “servidor público” é aquele que “seve ao povo” e o desprezo, quando não a
prepotência é a conduta típica desse “servidor”.
Não sei quantas gerações passarão até que o Brasil se transforme em um País onde
haja respeito ao direito, nas relações entre Estado e Cidadão. Visito Rousseau,
em sua obra “Contrato Social”,
publicada em 1762: “encontrar uma forma
de associação que defenda e proteja com toda força comum a pessoa e os bens de
cada associado e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça senão a si
mesmo e permaneça tão livre como anteriormente”. Duzentos e cinquenta e
quatro anos passados, essa lição não foi aprendida e nós, cidadãos, continuamos
escravos de um Estado arbitrário e corrupto.
Por falta de alternativa – e de tempo – eu e meu amigo
encerramos nossa inútil conversa e nos despedimos afetuosamente. Ficou o acre
gosto que fazemos parte de uma geração perdida.
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