terça-feira, 31 de maio de 2016

Maio: mês de Maria

Convencionou-se que o mês de maio, que se encerra hoje, é dedicado a Maria, mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo. Digo “convencionou-se”, porque Maria vive todos os dias em nossos corações, inundando-nos com seu incomensurável amor e sendo depositaria de nossas esperanças, nos momentos de aflição. Maria, Santa Maria de todos os nomes e regiões, unifica-se na capacidade de se entregar, por inteiro, em sua missão de servir ao filho, como todas as mães, de todos os nomes, que carregam seu rebento, desde o momento da concepção e o acompanha, vida afora, alegrando-se em suas vitorias e sofrendo, em suas derrocadas. Maria, mãe de Jesus, não foi mera espectadora de sua caminhada até o calvário. Como toda mãe, educou-o, na infância, repreendeu-o, quando ele se desgarrou dela, deixando-se ficar, no templo, entre sacerdotes, seguiu-o, em suas peregrinações e até o convenceu a realizar seu primeiro milagre, nas “bodas de Canaã”, mas, acima de tudo, mesmo sabendo da missão divina do filho, rasgou seu coração, na dor de seu sofrimento e, dor indescritível, repousou-o, morto, em seus braços. Maria é a obra prima, por excelência, de Deus, pois, através dela, Ele deu ao mundo seu unigênito para transmitir sua mensagem de amor. E não é assim com todas as mães, para quem cada filho é um “unigênito”? Se só chegamos ao Pai pelo Filho, tenho, para mim que, para se obter a graça do Filho, o melhor caminho é Maria. Deus tudo pode, portanto não precisava de Maria para fazer cumprir seus desígnios, ainda assim Ele quis fazer uso dela para trazer ao mundo seu Filho, para fazer chegar até nós a sua graça e salvação. Por isso, entregando nossa vida nas mãos de Maria, podemos mais facilmente ser conduzidos a Cristo. Assim, apenas simbolicamente, o mês de maio é dedicado a Maria, vez que ela está presente, todos os dias, em nossas vidas, como mãe abnegada que vela, sem cessar, pelo filho.
“Tu és, Maria, mãe da vida,
Sorriso do Deus nascido
Na plenitude dos tempos.”

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Por causa do evangelho de cada dia

Tenho o ancestral hábito de, antes de começar o trabalho cotidiano, fazer alguma oração, pedindo proteção para a jornada e visitando o ‘’evangelho do dia’’. De ambos – oração e evangelho – recarrego as baterias, cada vez mais gastas, nestes tempos de insegurança. Olho em torno e, ao constatar quantas pessoas dependem de mim, já gasto pelos fevereiros acumulados, arrepio-me. Pois na sexta-feira última, de movimento nenhum, telefone deliciosamente silencioso, repeti o ritual das manhãs chegantes e fui ao evangelho de Marcos (11,11-26), de onde extrai dois ensinamentos. O primeiro, vem da irritação de Cristo com a figueira que, por não ser época de frutos, não os dá. Por que teria Jesus se irritado, por não ter colhido frutos, mesmo sabendo que não era época deles? Depreendi que Ele quis nos ensinar que é preciso dar frutos, em qualquer época. Tive a impressão que Ele se irritava comigo, com esta vontade, quase ensandecida, de fechar a porta, deixar para trás compromissos, incompreensões, desamores e, tal qual a figueira improdutiva, andar, sem rumo e sem companhia, por uma praia sem fim. Enquanto escrevo, o telefone toca. Alguém exigindo alguma coisa de mim. Vejo-o, olhando, grave, para mim, como a dizer-me ‘’não disse que você tem que ser como a figueira, a dar frutos, a qualquer época?’’ Consola-me saber que um dia esta figueira morrerá, cessando sua responsabilidade de parir frutos e desaparecerá, sem deixar vestígios. A segunda parte do evangelho de Marcos, por sinal bastante conhecida, fala do momento em que Jesus expulsa os comerciantes do tempo: ‘’não está escrito que a minha casa será chamada casa de oração para todos os povos? ‘’Vós, porém, fizestes dela um antro de ladrões’’. Aqui, não saio da obvia interpretação: se vivesse, hoje, quanto trabalho teria Jesus, ao ver o numero de ‘’casas de oração’’, transformadas em ‘’antro de ladrões’’, que exploram a fé, principalmente dos mais humildes, enriquecendo-se, por conta da promessa de milagres... que não acontecerão. Com certeza, muitos destes políticos, envolvidos em corrupção de todo o gênero, inclusive no desvio da merenda escolar de crianças famintas, freqüentam as missas dominicais e até comungam, esquecidos, ou melhor, despreocupados de que a Eucaristia é o momento em que se estabelece o vinculo entre o homem e Jesus: ‘’fazei isto em memória de mim.’’ Quando eu era criança e me preparava para a ‘’primeira comunhão’’, a catequista – irmã Frozina – (uma freira muito brava, que ensinava o catecismo com uma ameaçadora régua nas mãos), fazia-nos terrível advertência: se mastigássemos a hóstia ou, tivéssemos maus pensamentos, na hora da comunhão, a hóstia se cuspiria e sangue escorreria de nossa boca. Por isso, quando o sacerdote nos oferecia a hóstia consagrada e dizia ‘’o corpo e o sangue de Cristo’’, eu começava a tremer e suar frio, tal o temor de mastigar a hóstia ou ser acometido de pensamento negativo. Pensando bem: gostaria que fosse verdadeiro o vaticínio de minha catequista. Com certeza, seria o fim da hipocrisia religiosa e veríamos a afirmação do ensinamento do Papa Bento XVI, na introdução de sua encíclica ‘’Sacramentum Caritatis’’, onde ele afirma: ‘’No Sacramento do altar, o Senhor vem ao encontro do homem, criado à imagem e semelhança de Deus, fazendo-se seu companheiro de viagem. Com efeito, nesse sacramento, Jesus torna-se alimento para o homem, faminto de verdade e de liberdade. Uma vez que só a verdade nos pode tornar livres, Cristo faz-se alimento de verdade para nós’’.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Teria a montanha parido um rato?

Apesar de não ser economista e ter dificuldade para gerir as próprias finanças, arrisco-me a tecer considerações sobre as reformas, propostas pelo Presidente Temer, para tirar o País do atoleiro, em que o petismo nos enfiou. Ninguém duvida que a retomada do crescimento, em circunstâncias tão adversas, exigirá sacrifício de todos os segmentos sociais e, neste sentido, ouso dizer que as reformas propostas foram tímidas. Como o próprio Temer declarou, em entrevista ao ‘’Fantástico’’, já que não pretende ele ser candidato em 2018, pode se dar ao luxo de ser impopular, desde que, é claro, essa impopularidade decorra de medidas, que reequilibre a economia do Brasil. Assim, por que não apresentar um pacote de privatização de empresas públicas que, além de reduzir o custo da máquina administrativa, captaria recursos para os cofres públicos? Não seria hora, por exemplo, de Pedro Parente, com sua incontestável competência, avaliar a possibilidade de fatiar a Petrobrás, alienando subsidiarias, sem que isto implique na quebra do monopólio estatal? Não seria o momento de, através de concessões, juridicamente seguras, transferir à iniciativa privada a exploração dos portos e aeroportos? No que concerne às reformas, limitou-se o plano à da previdência, esquecendo-se de que a flexibilização das relações de trabalho, talvez seja o caminho mais rápido para a geração de empregos. Qualquer empresário sabe que o ‘’custo trabalhista’’ é o maior óbice para novos investimentos. O Brasil é campeão mundial em reclamações trabalhistas, em grande numero forjadas, em suas reivindicações, transformadas em verdadeira indústria, por advogados inescrupulosos e por uma justiça especializada que, 70 anos passados da edição da CLT, ainda considera o empregador, meliante e o empregado, ‘’hipossuficiente’’. Não seria a oportunidade de, tal qual acontece nos países desenvolvidos, transferir para os respectivos sindicatos, patronal e laboral, a definição das relações de trabalho, que passariam a ter força de lei, insuscetível de serem remetidas ao Poder Judiciário Trabalhista? É absurdamente ilógico que uma rescisão de contrato de trabalho, homologada em sindicato, ou na própria unidade local do Ministério do Trabalho, ainda possa ser submetida, com novas reivindicações, à Justiça Laboral. A essa excrescência dá-se o nome – e outro não há – de insegurança jurídica. De larga data, não mais advogo naquele ramo do Direito, mas, quando lá atuei, orientava meus clientes a só pagarem verbas rescisórias, nas decorrentes reclamações trabalhistas. Podia ser injusto para o empregado dispensado, mas era caminho seguro, a impedir surpresas, que geravam custos não previstos. Também seria o momento de se propor uma reforma tributária que, de forma justa, alimentasse o caixa do Estado. Por que não a CPMF, o mais democrático dos tributos, porque trata desigualmente os desiguais, de modo que quem movimenta mais ativos financeiros, paga mais e quem movimenta menos, paga menos? Por que não aumentar a alíquota de produtos supérfluos, como cigarro, bebida, artigos de luxo e reduzir a de produtos de consumo popular? Não é hora de meias medidas, que não vão trazer resultados eficazes e de curto prazo. O BNDES vai devolver 100 bilhões ao Tesouro Nacional? Ótimo, mas de onde vai sair essa dinheirama e em que prazo vai ocorrer tal devolução? O governo Temer tem prazo de validade pré-fixado: 180 dias e nem o mais horripilante pesadelo nos faz imaginar ter Dilma e sua gangue de volta. Melhor, até, fora sonhar que estamos na Venezuela. 

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Brasil: hora de superação das dificuldades

O presidente Temer começa a enfrentar dificuldades para colocar o País nos eixos, depois de 13 anos de incompetência e irresponsabilidade petista. Revelado o real tamanho do rombo – 170 bilhões -, duas soluções se impõem, com absoluta urgência: enxugamento da maquina administração e efetivação de algumas reformas, como, por exemplo, a da previdência, reformas estas que nunca saíram do discurso. Pois o Presidente começou por reduzir o numero de Ministérios, alguns aliás, que sequer mereciam existir. O Brasil atravessou séculos tendo um Ministério da Educação e Cultura. Como se precisava acolher os apaniguados, cindiu-se aquela Pasta, criando-se um inútil Ministério da Cultura, para servir um bando de intelectualóides, que recebiam polpudas verbas para fazer filmes e encenar peças, as quais ninguém assistia. A Lei Rouanet atendia àqueles que tinham alguma coisa de relevante a oferecer e funciona muito bem. Pois bem, foi só o Ministério da Cultura voltar a se reintegrar ao Ministério da Educação, sob forma de Secretaria, para aqueles intelectualóides, membros de uma esquerda carcomida, saírem esperneando pelas ruas. Afinal, o que é mais importante: ter uma política, bem estruturada, voltada pra a cultura, em todos os seus matizes, ou o status do Órgão? Lamentavelmente, Temer recuou e voltamos a ter um inútil Ministério da Cultura. Se pensa o Presidente que, com tal recuo, ganhará o apoio ou, pelo menos, a simpatia desses intelectualóides, está redondamente enganado. Pertencem eles àquela classe, acostumada a viver pendurada nas tetas do Estado e, por isso, o lulopetismo soube servir-se deles. A maioria, na verdade, passa longe de ser intelectual, como a atriz Sonia Braga, que fez sucesso em novelas da Globo e, agora, no ostracismo de final de carreira, não perde a oportunidade para aparecer.
Outra questão, que vai dar muito pano pra manga, é a reforma da Previdência Social, cujo déficit cresce em progressão geométrica, enquanto a arrecadação cresce em progressão aritmética. A razão é simples: aumentou-se, substancialmente, a expectativa de vida do brasileiro, o que exige que se fixe idade mínima para se aposentar, independentemente do tempo de contribuição. Todos sabemos disto, como única solução, mas, quando se propõe tal solução, o corporativismo fala mais alto e tome boicote à proposta. Finalmente, merecem algumas linhas sobre o provável aumento de impostos ou criação de novos. Como fazemos, em nossa vida pessoal, quando nosso faturamento é inferior as nossas despesas? Simples: ou reduzimos tais despesas, adequando-as àquele faturamento ou tratamos de faturar mais. No caso do Governo, esta equação é mais complicada, porque sua receita advêm dos impostos arrecadados. Assim, as duas soluções devem ser conjugadas. Como o ‘’Estado - Empresário’’ é anacronismo administrativo, algumas empresas públicas podem e devem ser privatizadas e, por outro lado, o retorno da CPMF surge como um mal necessário. A melancólica realidade é que fomos jogados em um buraco negro, do qual, para sairmos, todos temos que dar cota de sacrifício, para a retomada do desenvolvimento e, com esse, a volta do emprego e da tranquilidade social. Os organismos internacionais já acenam, com otimismo para o Brasil e não podemos perder esta oportunidade de reconstruir o País. Como Temer não é mágico, é missão de todos nós. Afinal, a ‘’guerra’’acabou, com o afastamento da Presidente Dilma e agora é trabalhar para reconstruir o Brasil.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Por causa desta Sexta-Feira



Sexta-feira fria e chuvosa, pessoas de semblante fechado, trânsito amarrado, atrasando ou cancelando compromissos, tudo isto leva-nos a pequenas e passageiras depressões, lembrando o verão que se foi, junto com a idade que se teve e que consagrava, em todo o seu esplendor, o direito de ir e vir, hoje limitado, pelo tempo, como fenômeno meteorológico e como todos os anos decorridos. Reconforta-nos constatar que faz, exatamente, 8 dias que Dilma e seu bando se foram e a guerrilha, que eles preconizaram, não aconteceu. Há certas solidariedades que só vão até o ferimento leve, como dizia o saudoso Abelardo Jurema. Aliás, solidariedade é substantivo que, dia a dia, torna-se mais rarefeito, cada qual tendo que enfrentar seus leões, que o mar não está pra peixe. Deus, quando fez o homem – e a mulher, em momento de precipitação, desculpe, Chefe, - fê-lo a sua imagem e semelhança. Equivocou-se – desculpe, outra vez, Chefe – querendo o dotou de livre arbítrio, porque aí nasceu o ‘’pega pra capar’’ ou o ‘’salve-se quem puder’’, as guerras, individuais e coletivas. Ao constatar que o homem se tornara um desvairado, diz o ‘’livro do Genesis’’ que ‘’O Senhor arrependeu-se de ter feito o ser humano na terra’’ (Gn 6,6). Apesar disto, Ele resolveu nos dar outra oportunidade, destruindo tudo e todos, para começar tudo de novo, porisso preservou Noé, único puro e sua prole e os animais que ele escolheu. Adiantou? Coisa nenhuma, porque a maldade, ao contrario do que imaginava Rousseau, está impregnada no ser humano, desde o momento da concepção. Deus, que é persistente, ainda mandou seu Filho, para nos ministrar lição de amor ao próximo. E o que esse Filho trabalhou, não teve prá ninguém. Percorreu centenas de quilômetros, pregando a paz e a fraternidade, curou doentes, expulsou demônios, ressuscitou mortos, enfrentou os poderosos e, por fim, sacrifício supremo, deixou-se imolar. Adiantou? A meu modestíssimo juízo, não. Mal ascendeu ele ao céu, o pau voltou a comer, aqui embaixo e até inventaram uma expressão equivocada: ‘’o homem é o lobo do homem’’. Equivocada sim, porque lobo não come lobo. Ao contrario, a alcatéia se une, para se auto proteger, enquanto o ser humano trucida seu semelhante, seja para lhe tomar o território, seja para subtrair-lhe um misero celular. Vejam-nos, a nós, os católicos praticantes: pelo menos uma vez por ano, por ocasião da Páscoa, evento maior da Cristandade, nós nos confessamos e, seguindo o ritual, assumimos o compromisso de não reincidir nos mesmos erros confessados. Cumprimos o compromisso assumido? Qual o que! Já na saída da Igreja, cobiçamos a mulher do próximo, que passa com suas coxas torneadas e nos mordemos de inveja da BMW, tinindo de nova, estacionada à frente de nosso carro, a pedir aposentadoria. A ultima vez que me confessei, meu confessor de 5 ou mais anos, nem mesmo me determinou uma penitencia. Provavelmente, conhecendo-me bem, tinha certeza que, dá próxima vez, eu voltaria contando os mesmos pecados. Como se trata de Sacerdote de refinada cultura e excelente papo, penso que, quando lá voltar, vou apenas para jogar conversa fora e, quanto aos pecados, apenas direi: ‘’vide os da vez anterior, os quais ratifico, em seu inteiro teor e forma.’’
Desculpem-me, mas é o que tenho para uma melancólica sexta-feira sem previsão de melhorar, no resto do fim-de-semana. 

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Considerações sobre o denuncismo




Em entrevista concedida à revista ‘’Veja’’, edição do último fim-de-semana, importante socióloga norte-americana faz apologia do denuncismo ou ‘’dedurismo’’, em linguagem popular, para reduzir a criminalidade. Em determinado ponto da entrevista, a socióloga afirma ‘’não importa a motivação de quem denuncia’’. De larga data, a Polícia instituiu o ‘’disque denuncia’’, garantindo o anonimato do denunciante. Venho de longínqua geração, tendo aprendido cedo que o dedurismo é deformação de caráter. Conto marcante episódio: cursava eu o 5º ano primário – hoje, 1º grau – e era aluno de uma tia, brava e rigorosa que, inclusive, morava com nossa família. Certa feita, um colega, punido por qualquer razão, aproveitando que ela se virara, disse-lhe, baixo, um palavrão e eu me julguei, como sobrinho, no direito ou obrigação de denunciá-lo, o que lhe provocou nova punição. À noite, durante o jantar, meu pai à cabeceira da mesa, a tia narrou o acontecido e não me recordo dos comentários. Recordo-me, sim, que, encerrado o jantar, meu pai convocou-me a seu quarto que era, para nós, filhos, ‘’fortaleza inexpugnável’’, onde me fez ver que meu ato fora fraqueza de caráter, que jamais poderia ser repetido. Veio a Revolução de 31 de Março de 1964, da qual fui e ainda sou adepto, por tudo que dela resultou de positivo para o Brasil. À época, morava eu com meu cunhado, que era comandante da Varig e membro atuante do ‘’Sindicato dos Aeronautas’’ que trabalhava, junto ao Governo João Goulart para a criação da ‘’Aerobrás’’, cujo objetivo era estatizar a aviação, no Brasil. Com a Revolução, tal projeto não só ‘’foi para o espaço’’, mas também alguns diretores do Sindicato tiveram suas prisões decretadas e dois, que eu já conhecia, foram se homiziar lá em casa. Tínhamos, eu e eles, acirradas discussões e jamais cogitei em dedurá-los, tranqüilidade que sempre tiveram. Assim, ao longo de minha vida, consolidei meu total desprezo pelo delator, seja aquele que delata, ‘’sem motivação’’, seja o que delata ‘’com motivação’’. Não é por outra razão que torço o nariz para a ‘’delação premiada’’, tal qual vem sendo ela utilizada na operação ‘’lava jato’’: prende-se o averiguado e condiciona-se sua liberdade – o premio – às denuncias de terceiros, que ele fizer. Pode ser legal, mas, sem dúvida, rompe os limites da moralidade. Quanto à denuncia anônima, considero-a incontestável excrescência jurídica, pois, se falsa for ela, incorrerá o denunciante no crime de ‘’denunciação caluniosa’’ e se sujeitará à ação indenizatória, para ressarcir o denunciado pelos prejuízos, morais e materiais, decorrentes da denuncia falsa. Mas, se anônima for ela, como responsabilizar o denunciante? Na verdade, o denuncismo retrocede-nos à época do nazismo e do stalinismo, onde filho denunciava pai, vizinho denunciava vizinho, com ou sem motivação. Continuo, como Brecht, achando que há, no ser humano, um mínimo de dignidade da qual não pode ele abrir mão, e o denuncismo ultrapassa esse limite mínimo. 

quarta-feira, 18 de maio de 2016

A Violência, hoje e ontem



Pela internet chega-me a noticia de jovem assaltante, preso em flagrante por populares, que o amarraram a um poste e o surraram, até a chegada de uma viatura policial que, a tempo, impediu-lhe a morte. Já na semana passada, em jogo de futebol, torcedores de um clube agrediram, com incomum agressividade, um único simpatizante do time adversário, desferindo-lhe socos, pontapés e até pauladas, tendo o rapaz agredido sido removido, inconsciente, em maca. Provavelmente a Psicologia explique porque pessoas, isoladamente pacíficas, quando reunidas, sejam capazes de praticar atos de barbárie. Os fatos acima remetem-me a minha interiorana cidade, eu com meus 10 anos. Uma jovem da sociedade local fora estuprada morta e abandonada, em terreno baldio, localizado na periferia da cidade. O crime provocou enorme comoção popular, não só pela sua inusitada natureza, mas também por envolver moça de uma das mais proeminentes famílias de uma cidade que, à época, não teria mais do que 30 mil habitantes e onde todos se conheciam e mantinham estreitas e afetuosas relações, freqüentando o mesmo clube, indo ao único cinema e aos poucos – dois ou três – restaurantes e sorveterias. É claro que, quando falo ‘’todos’’, refiro-me àquela minoria privilegiada, que constituía a ‘’nata’’ da população. O certo, porém, é que, identificado o assassino, dias após o sepultamento da vítima, seus familiares e amigos realizaram verdadeira caçada para localizá-lo. Encontraram-no, dormindo, em modestíssima casa, em um bairro pobre, distante, cerca de um quilometro do centro da cidade. Era um mulato forte, de uns 30 anos, que não esboçou qualquer reação ao ser amarrado e arrastado, sob pancadas, até a praça principal, onde foi linchado por dezenas de pessoas, algumas, até, que nem mesmo conheciam a vítima. Eu, sentado em uma mureta defronte, a tudo assisti e, mais de meio século depois, ainda vejo o semblante horrorizado do criminoso – Haroldo, era seu nome – que se deixou imolar, sem qualquer gesto de defesa. Muitos de seus agressores – comerciantes, profissionais liberais – eu os conhecia, cumprimentava-os, no dia a dia, e sabia serem pessoas pacatas que, inclusive, freqüentavam a missa dominical. Fico a me perguntar que vírus da fúria incontrolada é neles inoculado para que, quando reunidos em grupo, sejam transformados em bestas-feras. O linchamento de Haroldo, ocorrido há mais de 50 anos, em uma pequena cidade do interior, repete-se, com a mesma fúria, por motivos de menor relevância, na maior cidade do Brasil. Até quando o homem continuará a ser o lobo do homem?

terça-feira, 17 de maio de 2016

Reflexões sobre a morte e suas causas

Já começo a sentir falta de Dª Dilma e do PT, não por eles, é claro. Já foram tarde, mas é que eles sempre rendiam assunto para estas ‘’mal traçadas’’. Agora, tenho que beber em outras fontes e as minhas são de pouca água. Mas, vamos lá: hoje vou falar, sem drama, da morte e da maneira mais conveniente de dar-lhe as mãos. Lá do interior, de onde vim, distinguia-se duas espécies de morte: a ‘’morte morrida’’ e a ‘’morte matada’’. A primeira decorrida de causa natural – as doenças e a segunda resultava do homicídio ou suicídio. Disputas por terras e garimpos ou questões políticas, sempre geravam ‘’morte matada’’. Aos que afirmam que, nos tempos atuais, o País está dividido é porque não viveram, no interior, lá pelos anos 50. Conto episodio caseiro, só para exemplificar: meu pai era pessoa pacifica, gostava de reunir os amigos para boa conversa e beber ‘’Old Parr’’, seu uísque preferido. Era partidário do antigo PSD, de Benedito Valadares e Juscelino. Tinha saúde frágil, atormentado por pressão alta que, em seus picos, obrigava-nos, a nós, seus filhos, saírem correndo (o telefone ainda não chegara à cidade), em busca de médico, para socorrê-lo. Certa feita, o único localizado era o Prefeito da cidade, Dr. Petrônio Mendes de Souza, competente, mas que tinha intransponível defeito: era membro do PR- Partido Republicano, o mais figadal adversário do PSD. Petrônio era um homem generoso e não se recusou a atender meu pai. Só que este era ‘’turrão’’ e se recusou a ser atendido pelo seu maior adversário político. Ficou aquela situação constrangedora: Petrônio, na sala, tomando café, preparado pela minha doce mãe e meu pai, trancado no quarto. No dia das eleições, era comum verem homens portando, acintosamente, armas. Não se levava desaforos para casa, daí o aumento de ‘’morte matada’’, naquelas ocasiões. Meu pai morreria, de ‘’morte morrida’’, aos 56 anos, vitima de um ‘’AVC’’, doença que me aterroriza, porque, antes de matar, tira a dignidade do ser humano, fazendo-o dependente de terceiras pessoas, até em suas necessidades fisiológicas. Ultimamente, ando preocupado com o ‘’Alzheimer’’, vulgarmente conhecido como ‘’alemão’’. Outro dia, reli um livro, leitura fácil que se faz, ouvindo música e batucando no computador e, para meu quase desespero, não me lembrava do enredo, sendo cada página uma surpresa. Quase um pânico, levei o problema a minha esposa que, com muita acuidade, observou que, com certeza, exatamente por ser livro de leitura fácil, não arquivara o enredo na memória. Acalmei-me, até porque ainda sou capaz de recitar, de cor, pelo menos os dois primeiros ‘’cantos’’ dos ‘’Lusíadas’’, dois discursos de Cícero e vários poemas, principalmente de Castro Alves e Fernando Pessoa. Não me engano e sei que isto nada significa, porque me lembro de excelente ator, já falecido em idade avançada, que, ao longo de sua vida, decorou centenas de falas e, ao final, foi tomado pelo ‘’alemão’’. Na minha ignorância, vou de raciocínio lógico: se os músculos envelhecem, os ossos envelhecem, os órgãos – principalmente ‘’aquele’’ – envelhecem, por que o cérebro não envelheceria? É doença atroz, para doente, que sai do mundo real e viaja para o mundo imaginário e para os parentes e amigos, que têm que conviver e se preocupar com a perda de lucidez.
Pensando bem: prefiro morrer de ‘’morte matada’’. É rápida e traz um pouco de gloria e mistério.


segunda-feira, 16 de maio de 2016

Considerações sobre o aborto

De quando em vez, ressurge debate sobre o aborto, muitos defendendo a tese de ser direito da mulher interromper a gravidez, quando e se lhe convier, daí a necessidade de descriminalizar tal prática. Por outra banda corrente diversa – na qual me incluo – entende que nosso Código Penal já estabelece, com muita clareza, as hipóteses em que o aborto não será punido: a) “se não há outro meio de salvar a vida da gestante”; b)”se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante”. Os que defendem a descriminalização do aborto, sob o fragil argumento de que a mulher tem o direito de dispor do próprio corpo, esbarram no entendimento de que, a partir da fecundação, já existe vida e, extirpá-la, não configura direito próprio, mas obrigação de preservá-la. Não é por outra razão que nosso Código Penal insere o aborto – arts. 124 / 128 – no capítulo I do titulo I, que versa “dos crimes contra a vida” e o Código Civil preserva o direito do nascituro.
Também tem sido objeto de acirradas criticas o projeto de lei 5.069/13 ao exigir que os casos de estupro sejam, obrigatoriamente, levados a conhecimento da autoridade policial competente e a mulher violentada passe por exame de corpo de delito. Sustentam os críticos que, por gerar constrangimento, muitas mulheres, vitimas de estupro, deixarão de procurar os meios adequados para fazerem o aborto, submetendo-se a “curiosos” que lhes colocarão em risco a saúde e até mesmo a própria vida. Nos termos do art. 213 do Código Penal, o estupro consiste em “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”. Diz-se, em Direito, que se trata de crime de “ação pública”, o que significa que o principal interessado na sua apuração e punição é o Estado. Assim, o aludido projeto de lei, quase nada inova, vez que, se a mulher, por si ou por seu representante legal, não levar o fato ao conhecimento da autoridade policial competente, não há como apurar sua autoria e punir o culpado. Quanto ao exame de corpo delito, é ele imprescindível para fazer a prova da violência, a que a vitima foi submetida. Só a palavra dessa, mesmo sendo considerada relevante, é prova acessória que, sozinha, não é suficiente para estabelecer a autoria e a materialidade do crime, daí emergindo a necessidade da prova policial. A jurisprudência tem convergido no sentido de aceitar a chamada “prova indireta”, aquela produzida através de outros elementos, como testemunhas idôneas, antecedentes do agente, relação de dependência entre autor e vitima, etc. O que importa destacar é que, para se considerar o estupro “justa causa” para o aborto, é preciso que fique ele, o estupro, inequivocamente provado. Lamentavelmente, quando se debate a questão do aborto, é ele focado, quase exclusivamente, nos interesses da mulher, sem se considerar o ser, que já pulsa dentro dela, que não pediu para estar ali e que tem o direito de vir ao mundo.


sexta-feira, 13 de maio de 2016

A Hora do Comedimento

Constitui sabedoria popular que, mesmo dos piores momentos, podemos tirar resultados positivos. O Brasil vive a mais grave crise econômica de sua história que, na verdade, foi a força propulsora do impeachment da Presidente Dilma e, se o novo Governo, cuja legitimidade é, pelo menos discutível, não minimizar, em curto prazo, os efeitos dessa crise, também não se sustentará. Mas, não falarei de política e, sim, como conseqüência positiva, o reaprendizado a que cada qual deve se submeter, não só como método de sobrevivência, mas também em respeito aos menos afortunados, desprovidos de necessidades básicas, seja em razão de desemprego, seja em razão de achatamento salarial. Impõe-se mudança de atitudes, ações concretas. Se as vendas estão em queda livre, que tal os comerciantes reduzirem suas margens de lucro? Viajar para o exterior, principalmente agora, que o verão, lá chegará, em uma mês, é ótimo. Levar as crianças à ‘’Disney’’, ou viajar pela França e Itália, bebendo bons vinhos. Passeios, que um casal, sem grandes luxos, consome, em 15 dias, não menos do que 50 mil reais. Que tal deixar a viagem programada para o próximo ano? Estou a fazer estas reflexões, em razão de duas diferentes matérias, lidas na última ‘’Vejinha’’. Na primeira, recomenda-se um restaurante que sugere um prato contendo polvo, acompanhado de ‘’risoto de brie com passas’’, ao preço de 68 reais. A fotografia do prato nos mostra 4 pequenos pedaços de polvo, 3 passas e uma porção de arroz que, com muito boa vontade, atinge 100 gramas. Se considerarmos que, na feira-livre, compra-se polvo a 50 reais o quilo e arroz, tipo 1 “a”, no máximo, a 5 reais, é de concluir que, com todos os agregados (aluguel, luz, água, salários, etc), o custo de tal prato não ultrapassa a 20 reais e, assim, oferecê-lo a 68, além de se constitui abuso, é correr o risco de vê-lo ‘’encalhar’’. Quantos restaurantes cerraram suas portas, neste último ano, em razão da retração do consumidor? Conheço muita gente abonada, de dinheiro e bom senso, que, nestes tempos bicudos, prefere reunir os amigos, ao pé de um bom vinho e canapés caseiros, para um ‘’bate-papo’’, sobre todas as coisas, o que, convenhamos, é muito mais agradável do que ficar sentado, a meio de pessoas estranhas. Ou o tal restaurante revê seus preços ou corre o risco de viver dias amargos. A segunda noticia, extraída da mesma ‘’Vejinha’’ e que tem, como titulo ‘’casamento dobrado’’, informa que milionário casal, para comemorar sua feliz união, dará duas recepções uma, em São Paulo, menos suntuosa e outra, na ilha de ‘’Sain Barths’’, para 300 convidados, onde ‘’o casal fechou o hotel mais sofisticado da ilha, o Le Sereno. Todas as 36 suítes e três vilas estarão à sua disposição.’’ Faço as contas, com a cabeça de classe média e concluo que a festança vai passar de 01 milhão de dólares, ou seja, cerca de 04 milhões de reais. Será isto realmente necessário, em um momento que 11 milhões de desempregados não sabem como vão alimentar e vestir suas famílias? É claro que cada um gasta o que tem, como bem lhe apraz, mas um pouco de comedimento é sempre recomendável. Certa feita, tive o privilegio de conversar com o Dr. Antonio Ermírio de Moraes, então considerado o homem mais rico do Brasil. Depois de algumas garrafas de vinho (‘’a bebida é a sacarrolha da verdade’’, ensinava, como advertência, minha falecida mãe), ousei perguntar-lhe sobre sua quase folclórica simplicidade de vida, apesar de sua maravilhosa residência e excelência de seus vinhos. Justificou ele dizendo que os mais ricos tinham que dar o exemplo que o dinheiro, por ser conseqüência do trabalho, tinha que ser valorizado, em seu uso. Fica a lição para o jovem casal e que sejam felizes para sempre.... mesmo que os ventos soprem ao contrário. 

quarta-feira, 11 de maio de 2016

O amor e a chantagem

Cena 01
Ela se chamava Ana Lucia. Morena, mais de 1,70m,olhos absurdamente pretos, pele bronzeada. Aos 26 anos, começara a trabalhar em um escritório de arquitetura, depois de mais de um ano de formada, sem conseguir emprego. Sabia de seu potencial, porisso não iria se aviltar, como tantos colegas, transformando-se em decoradora: Após várias entrevistas, fora contratada pelo escritório ‘’RS2 – Arquitetos Associados Ltda.’’. Os ‘’arquitetos associados’’ eram, na verdade, marido e mulher, especializados em projetar residências de alto padrão. Pelo menos, era um começo. Casara aos 23 anos, muito mais para se livrar da opressão do pai do que por amor a Glauco, bonzinho, mas de quase nenhuma cultura e ambição. Era gerente de supermercado e, para ele, isto bastava, apesar do baixo salário. Exatamente por essas duas razões – nenhuma cultura e falta de ambição – o casamento já estava em crise. Dinheiro pouco, morando na periferia, sexo, só raramente, ele sempre cansado e cheirando à cerveja. Foi quando Ana Lucia conheceu Marcos, o engenheiro responsável pela reforma da mansão dos Almeida de Castro, no Morumbi, cujo projeto era do escritório e sob sua supervisão. Marcos estava chegando aos 40, casado, com dois filhos adolescentes. Educado, elegante, jamais alterava a voz, fosse para discutir detalhe técnico, fosse para dar a bronca em um peão de obra. Mas o que chamou a atenção Ana Lucia, quando o conheceu, foram as mãos de Marcos, longas, fortes, unhas sempre impecáveis. Ele a convidou para almoçar e ela aceitou. Conversa trivial, sobre trabalho, o achatamento do mercado etc. Mas ela reparou que ele, de quando em vez, tentando disfarçar, lançava olhares pedintes para as coxas dela... e ela gostava. Era uma insuportavelmente quente tarde de verão e Ana Lucia já se imaginava sufocada, em um transito que se arrastava, mais de uma hora em seu velho ‘’Fiat Uno’’, sem ar condicionado, presente ganho do pai, quando entrou na faculdade, quase 7 anos atrás. Porisso quase perdeu o fôlego, quando seu celular tocou. Era Marcos:
- ‘’Oi, tudo bem? Que tal um ‘’happy hour’’, até o trânsito aliviar?’’
Ela, quase sem pensar, aceitou o convite. Encontraram-se em um simpático barzinho, perto do escritório, falaram da vida, seus ganhos e perdas e, quando secavam a segunda garrafa de vinho branco gelado, ele aproximou sua cadeira da dela, tomou-lhe as mãos, beijou-lhe, superficialmente os lábios e, como não encontrou resistência, colaram as bocas, numa demora sucção, enquanto ele percorria as coxas macias, sentindo a leve plumagem, que a revestia. Nascia, ali, frenética relação onde predominava o sexo, cujos limites foram sendo ultrapassados, com o tempo. Às sextas-feiras, como se fora ritual, saiam, sem retorno, em direção à Barra Funda, onde se situava o ‘’Afrodite’’, motel classe ‘’A’’, onde se amavam, almoçavam, voltavam a se amar, até que a tarde começasse a esmaecer. Iam, quase sempre, no carro dela, porque ele, morando nas ‘’Perdizes’’, ali ao lado, não podia expor a ambos.
Cena 02
Salustiano, agora com 30, chegara a São Paulo, aos 15, vindo do interior de Sergipe, deixando para trás uma vida de misérias, trazendo consigo a esperança de ‘’ganhar a cidade grande, como dizia seu tio, com quem foi morar, no bairro do ‘’Tucuruvi’’. No começo, trabalhava como ‘’office boy’’, no centro da cidade e estudava à noite. Completado, às duras penas, o primeiro grau, constatou que ele e o estudo tinham completa incompatibilidade. Aos 20 anos fez um curso de segurança e foi trabalhar em uma empresa, a ‘’Total Serviços de Vigilância Ltda.’’ O tio, solteiro, sem filhos, morrera e ele herdara o minúsculo apartamento do Tucuruvi. O salário era pouco, mas dava para as despesas básicas, inclusive o ‘’pagodão’’ de fim-de-semana. Depois de pular ‘’de galho em galho’’, conhecera Deusminda – Minda, para os íntimos – morena, quase mulata, tipo ‘’mignon’’, por quem se apaixonou e ela por ele. Levou-a para o apartamento, ela, cuidadora de uma senhora idosa, ajudava nas despesas. Ambos sonhavam sonhos poucos, um fim-de-semana na praia, roupas melhores, um carrinho, mesmo de idade longeva. Sonhos, que o dinheiro pouco não permitia realizar. Salustiano fora trabalhar como segurança de uma grande concessionária de veículos, que ficava defronte ao motel ‘’Afrodite’’ e se impressionava com o movimento, principalmente na hora do almoço e, com mais intensidade às sextas-feiras. Comentou o fato com seu amigo Francisco, cabo da Policia Militar que, lhe disse serem os freqüentadores amantes ou homens com garotas de programa. O raciocínio de Francisco era tão simples quanto verdadeiro: que casal, marido e mulher, freqüentava motel, durante a semana e justamente na hora do almoço? Dias depois, Francisco ligou para Salustiano. Tinha tido uma idéia genial para levantarem boa grana: ele, Salustiano, muito discretamente, fotografava a placa dos carros, entrando no motel, naquele dia e horário e ele, Francisco, através do sistema da Policia Militar, identificaria o proprietário ou proprietária do carro e respectivo endereço e, depois, era mandar um bilhete, pedindo uma grana – 3 mil para carro comum e 5 mil para carro de luxo -, sob a ameaça de mandar a fotografia para a esposa ou esposo. Em um primeiro momento, Salustiano relutou, que não era nenhum santo, mas não queria acabar na cadeia, ainda mais agora, que estava de amor novo. Pouco a pouco, sua resistência foi baixando, ele, mesmo sem querer, fazendo conta: um carro comum e um de luxo por semana, renderiam 4 mil para cada um, 16 mil por mês, mais do que 3 vezes seu salário. Topou: ele fotografava, Francisco levantava os dados e mandava o bilhete para a “vitima”. Alguns cuidados essenciais: o local da entrega do dinheiro tinha que ser distante do local de trabalho de ambos e o ‘’bilhete’’, curto e grosso, tinha que ser colocado na agencia central do correio. A dupla começou a agir e, em 06 meses, cada um já tinha faturado 50 mil. Salustiano e Minda passavam fim-de-semana, em hotel em Santos, depois de ele ter comprado um ‘’gol bolinha’’, 1983. Minda perguntava de onde estava saindo o dinheiro e ele explicava que estava fazendo segurança pessoal para um ‘’bacana’’ e faturando boa grana, por fora e Minda, inteligência curta, engoliu a historia, até porque estava desfrutando mordomias, que nunca tivera.
Cena 03
- ‘’Marcos, é Ana Lucia, preciso, urgentemente, falar com você e pelo telefone não dá.’’
- ‘’Tudo bem, amor, podemos almoçar juntos.’’
Ana Lucia, voz de pânico: ‘’Você não está entendendo! Aconteceu uma coisa horrível, tem que ser agora.’’
- ‘’Ok, passo aí, telefono quando estiver chegando, você desce e nós conversamos. Não posso demorar, porque tenho reunião importantíssima às 11 horas’’.
Enquanto dirigia, em direção ao escritório de Ana Lucia, Marcos tenta adivinhar o que acontecera. Em dois anos de convivência, ela, sempre serena e ponderada, nunca a vira tão estressada, histérica até. Chegou a uma única conclusão: o marido descobrira, apesar de todos os cuidados tomados. É verdade que, com o tempo, foram relaxando, chegando em casa mais tarde, trocando carinho em público. Quando Ana Lucia entrou no carro, estava, nitidamente transtornada e mal conseguia falar:
- ‘’Veja o que chegou pelo correio. A sorte é que o porteiro esqueceu de entregar ao Glauco e entregou a mim, quando cheguei. Leia e me diga o que vamos fazer. E entregou a Marcos uma folha de papel e uma cópia de fotografia. A fotografia era a traseira do carro dela, onde se podia identificar as cabeças dos dois e, no papel, estava escrito:
‘’Prezada Senhora Ana Lucia Martins,
Vi a senhora entrar muito bem acompanhada, na última sexta-feira, exatamente às 12 horas e 35 minutos, no motel ‘’Afrodite’’ e sei que seu acompanhante não era seu marido. Segue a fotografia de seu carro entrando no motel. Se a senhora não quiser que ela caia nas mãos de seu marido, na 2ª-feira, as 11 da noite ponha 3 mil reais, em um envelope e coloque dentro do cesto de lixo do posto de gasolina Petrobrás, que fica na Rua Vergueiro nº 290. Estarei vigiando, não tente bancar a esperta. Vá sozinha.’’
Marcos leu e releu o bilhete varias vezes. O dinheiro não era problema. Que decisão tomar, pagar e correr o risco de continuar a chantagem, não pagar e correr o risco da foto cair nas mãos do marido de Ana Lucia, levar o caso à Polícia e o assunto se tornar público, expondo todos, inclusive ele que, por mais que estivesse envolvido com Ana Lucia, não cogitava abandonar a família? Começavam a pagar o preço de uma felicidade fugidia.
Em tempo: os personagens são fictícios, mas os fatos são verdadeiros. Interferi, como advogado, para a melhor solução. Portanto, aos ‘’aventureiros do amor’’ recomendo cautela.


segunda-feira, 9 de maio de 2016

Para não dizer que não falei de Eduardo Cunha

Quando tive a idéia de criar meu ‘’blog’’, pretendi denominá-lo ‘’blog do politicamente ‘’incorreto’’. E qual o por quê deste nome? Porque, ao longo dos anos, sempre que me reunia com amigos, para jogar conversa fora, minhas idéias e conceitos eram considerados ‘’politicamente incorretos’’. E sigo assim, procurando manter coerência apenas comigo mesmo. Todavia, quando pesquisei na internet, constatei que já existia blog com aquele nome. Foi quando me lembrei de historia contada pelo falecido poeta gaúcho, Mario Quintana: certa feita, fora ele procurado por escritor principiante, pedindo-lhe sugestão para titulo de livro, que acabara de escrever. Ironicamente, respondeu-lhe o poeta: ‘’seu livro fala de flautas e trombones?’’ ’não!’’, respondeu-lhe o noviço escritor, ao que retrucou o poeta: ‘’eis, aí, o titulo buscado por você: ‘’Nem Flautas, Nem Trombones’’. Inspirado no maior, dei nome ao menor e sigo com esta raquítica banda, mas sem a preocupação de ser considerado ‘’politicamente incorreto;’’ Já levei pauladas, por atacar o PT, por contar meu apreço a Carlos Lacerda, à Revolução de 1964. Mais recentemente, alguém acusou-me de ‘’assecla da corrupção’’, porque afirmei que delação premiada, com delator preso, caracteriza ‘’extorsão mediante seqüestro’’. Ainda esta semana, lá de longe, recebi e-mail, chamando-me a mim, incapaz de matar barata, (prefiro espantá-las) de torturador, porque teria saído em defesa de Jair Bolsonaro. Tratei de curar o equivoco, dizendo que não sou eu, mas a Constituição é que confere ao deputado, através da imunidade parlamentar, a livre manifestação de pensamento, quando exteriorizada, no âmbito do Congresso Nacional. Faço tão prolongada introdução, porque quero falar do episodio ‘’Eduardo Cunha’’, não para defendê-lo ou apoiá-lo, mas para afirmar, de forma ‘’politicamente incorreta’’, que, mais uma vez, o Supremo Tribunal Federal rasgou a Constituição, violando duas clausulas pétreas: a que dispõe sobre a presunção de inocência do réu e o principio da autonomia dos Poderes. Confesso que ando meio afastado do noticiário sobre ‘’lava jato’’ e Petrolão’’. Constrange-me, como advogado e cidadão, constatar que os empresários, que se recusaram à delação premiada, continuam presos e os corruptos, de todo gênero, que saíram dedurando, qual metralhadora giratória, circulam, livremente. É a justiça às avessas. Assim, talvez em razão de meu distanciamento da mídia, não tenha tomado conhecimento de que Eduardo Cunha já tenha sido julgado e condenado, pelos crimes, a ele imputados. Todavia, se ainda não há sentença condenatória, não se lhe podia aplicar a pena de suspensão de seu mandato. Até seu afastamento da presidência da Câmara (que se pode aceitar, como medida cautelar, pela condição de poder vir ocupar a Presidência da República), afigura-se-me como precipitada, já que Dª Dilma ainda não foi despejada do cargo. Por outro lado, a suspensão ou cassação do mandato, é atribuição exclusiva do Poder Legislativo, tanto assim é que Eduardo Cunha está sendo processado e será julgado pela Câmara Federal. Como ficará a decisão do Supremo, se ele for absolvido pelos seus pares? A quem tem um mínimo de bom senso, deve ser objeto de preocupação, quando o juiz, em cujas mãos todos podemos estar, ouve mais a ‘’voz das ruas’’ do que a ‘’voz da lei’’.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Carta a um irmão entristecido

Um dia, você, na sua ideologia, retirada da ‘’teoria da libertação’’, fugidia quimera de igualdade e justiça social, filiou-se ao PT, imaginando que, com a chegada da classe operaria ao Poder, todas as desigualdades seriam suprimidas, e passaríamos a viver no melhor dos mundos. Eu, cá de mim, cultura pouca, mas vivencia muita, passo longe de suas crenças. Não vou ficar de ‘’lengua-lengua’’, demonstrando que, historicamente, nunca houve sociedade totalmente justa e que, nos países desenvolvidos, o Estado tem funções mínimas, objetivando reduzir tais desigualdades. A esquerda, a sua esquerda, fracassou, porque pregou a utopia e, quando chegou ao Poder, viu que ‘’o buraco era mais embaixo’’ e quem manda mesmo são as leis do mercado. Tenho ciência que ‘’seu PT’’ não é este que morre, agora, sem honra nem gloria, afogado em inusitado mar de corrupção. Por que isto aconteceu? Quantas vezes você deve ter se perguntado isto, com o amargo gosto da decepção. Porque – respondo eu – o exercício do Poder exige preparo, no mais largo sentido do termo. Em algum lugar da Bíblia está gravado ‘’não é o servo maior que o senhor’’, o que, em entendimento rasteiro, significa que quem exerce o Poder deve ser superior, em formação cultural e moral, aos que a ele estão submetidos. É preconceito? Pode até ser, mas é assim que a roda gira. O fundamental é que todos tenhamos as mesmas possibilidades. A partir daí, fica por conta de cada qual, com esforço, alcançar seus objetivos. O populismo, o Estado paternalista acabou e seus resquícios apenas são encontrados em países subdesenvolvidos, dos quais – espero – o Brasil esteja saindo. Estes, que agora ascendem ao Governo, longe estão do meu ideal de governantes, todavia trazem consigo a esperança de novos rumos. Aprendi, no exercício da profissão, confiar, desconfiando e sigo, assim, sem grandes expectativas de que o Brasil rompa a barreira do terceiro-mundismo, mas, se não caranguejarmos, já está muito bom. Não lhe escrevo, depois de prolongado silencio, para tripudiar sobre o melancólico fim de seu partido. O importante é que sirva ele de reflexão, para você coordenar seu ideal, sem abrir mão dele, mas entendendo, com objetividade, como o jogo político é jogado, em todo o ocidente. Sigo, como você, julgando que ‘’todos têm direito a uma vida humana digna’’ e assino embaixo de Rosseau, quando este afirma que justa é a sociedade em que ‘’nenhum cidadão seja tão rico para poder comprar um outro, nem tão pobre para que alguém seja obrigado a vender-se’’.
Veja, assim, que, na essência, concordamos e queremos a mesma coisa. O que nos diferencia são os meios para chegar lá.
Fica meu abraço fraterno e meu desejo que possamos retomar nossos debates, que muito me enriqueceram.
Com carinho,

Saul

quinta-feira, 5 de maio de 2016

A sombra tenta ofuscar a luz

Tenho ancestral hábito de percorrer livrarias, em busca de assuntos novos, independentemente de suas naturezas. A depender de meu estado de espírito, vou da ficção à receita de bolo, passando pelos livros de Historia, estes, meus prediletos. Nos tempos de jovem – já o fui, acreditem! – minhas livrarias preferidas eram a ‘’Freitas Bastos’’, na XV de Novembro, a ‘’Civilização Brasileira’’ e a ‘’Livraria Francesa’’, estas últimas na Barão de Itapetininga, que nem sei se ainda existem, tanto tempo que não vou àquelas bandas. Atualmente, minha escolhida é a ‘’Martins Fontes’’, na esquina das Avenidas Paulista e Brigadeiro Luiz Antonio, à direita de quem vai para o ‘’Paraíso’’. Freqüento-a, com fidelidade, há vários anos, o que me permite, com desenvoltura, achar o que procuro, ou garimpar, sem gastar muito tempo. Não é que, na última semana, em lá estando, deparei com um livro do Fernando Jorge, tendo por tema a obra de Paulo Francis? Surpreendi-me, porque imaginava que o Fernando Jorge estava morto, já que nunca mais ouvira falar nele. Fora intelectual menor que, lá pelos anos 70, pretendeu ser um Gregório de Matos, cognominado ‘’boca do inferno’’, pela natureza ferina de seus poemas. Todavia, Fernando Jorge ‘’não decolou’’ e, no final dos anos 80, publicou um livro ‘’Cala a boca, Jornalista’’, falando da censura, à época do regime militar. O livro, além de medíocre, chegava tarde, com Sarney em pleno governo e muitas outras obras sobre o tema, desenvolvidas com mais competência. Comprei o livro sobre o Paulo Francis, levei para casa e perdi – literalmente, perdi – algumas horas da noite, lendo uma seqüência de ataques rasteiros. Fernando Jorge, com incompreensível fúria, investe contra Francis, acusando-o de plagiário e inimigo do idioma, tantos os erros gramaticais cometidos. Livro escrito com ódio. Ou, em algum lugar do passado, Francis espinafrou Fernando Jorge, que não o perdoou, ou é inveja mesmo, já que Fernando Jorge, de larga data mergulhado no ostracismo, provavelmente não suportou o retumbante sucesso de Paulo Francis, articulista dos principais jornais do Brasil e cronista habitual da ‘’Globo’’. Além disto, produziu importante obra literária, da qual destaco ‘’Cabeça de Papel’’ e ‘’Trinta Anos esta Noite’’, de leitura obrigatória. Francis, com a acuidade que o caracterizava, denunciou, com quase 20 anos de antecedência, os desmandos na Petrobrás.

No dia seguinte, voltei à livraria e, como sou cliente habitual, devolvi o medíocre livro do Fernando Jorge, ou, melhor, troquei-o por outro: ‘’O Sangue do Cordeiro’’, cujo autor, Sam Cabot, conta a historia de importante documento, subtraído da biblioteca do Vaticano, por feroz poeta antipapista e que, quando e se revelado, poderá abalar a estrutura da Igreja Católica. Promete! Depois eu conto. 

quarta-feira, 4 de maio de 2016

A charge e o voto



O cartunista Chico Caruso fez uma charge, publicada no jornal ‘’O Globo’’, vilipendiando a classe dos advogados, retratada como ‘’pior do que bandido’’, como diz o texto do desenho. A Ordem dos Advogados não se pronunciou, em defesa da classe, mas três profissionais do Direito, sentindo-se atingidos em sua honra e dignidade, estão movendo ações indenizatórias contra o cartunista, o qual, em sua defesa, invoca a liberdade de expressão, amparada por mandamento constitucional. A mim, advogado de pouco lustro, mas larga jornada, a charge, que considero coisa chata, sem graça, despida de qualquer valor artístico, não trouxe qualquer desconforto subjetivo. Todavia, sair dando tiros verbais e por escrito e, depois, buscar proteção na ‘’liberdade de expressão’’ é interpretar a ordem constitucional de modo equivocado. A ‘’liberdade’’ não tem valor absoluto, limita-se pela liberdade do outro e quem ultrapassa esse limite, deve responder pelo excesso. Assim o é em todos os países civilizados. Vejam a diferença de tratamento, no caso do deputado Jair Bolsonaro que, em seu voto pelo impeachment, rendeu homenagens a um oficial do Exercito, já falecido e tido como torturador, à época do regime militar. É claro que Bolsonaro pode invocar, em seu beneficio, o disposto no artigo 53 de nossa Lei Maior, que estabelece: ‘’os Deputados e Senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos.’’ Observo, na esteira dos ensinamentos do eminente constitucionalista, José Afonso da Silva, que ‘’o STF firmou entendimento no sentido de que qualquer declaração feita nas dependências do Congresso Nacional, seja na Tribuna ou nas Comissões, é objeto de inviolabilidade parlamentar, não sendo necessário analisar se existe ou não nexo causal entre as afirmações e o exercício do cargo para se aplicar a inviolabilidade.’’ (Inq. 655, Relator, Ministro Nelson Jobim). Como nos lembra o insigne jurista, a inviolabilidade constitui, material e formalmente, verdadeira excludente penal. Ora, a matéria é de conhecimento primário, para qualquer advogado, mas, mesmo assim, noticia-se que a Ordem dos Advogados, que nem mesmo demonstrou desagrado pela charge, estampada em um dos mais importantes jornais do País, ingressou com representação, pugnando pela cassação do Deputado, pela sua inoportuna declaração de voto. Vivemos tempo de cizânias, reconheço, mas, pelo menos os operadores do Direito devem observar as leis, antes de saírem atirando, como se amadores fossem.

terça-feira, 3 de maio de 2016

A estranha visita



Aquela fora uma sexta-feira para ser esquecida. O frio, cortante, chegara pra valer, escondendo as coxas torneadas em pesadas calças compridas e casacos, ainda cheirando a guardado. Os rostos alegres foram substituídos por semblantes taciturnos. A ida ao fórum fora inútil: os juízes federais, ao contrário dos estaduais, recusam-se a receber advogados. Talvez se julguem emissários de Deus. Camuflam, na arrogância, o seu pouco saber. A reunião, que era para ser pacifico entendimento, quase se transformou em guerra campal. Um de seus clientes preferidos – transformado em amigo afável – lutava, bravamente, para sobreviver, a meio a uma economia, sem rumo. Não temos governo: um, já morto, precisa ser sepultado, para que o outro se instale. Eram seis da tarde, quando retornou ao escritório, lembrando-se de outras sextas-feiras, quando, instalado na Faria Lima, tirava as tardes para passear no ‘’Shopping Iguatemi’’, ou fazer sauna e massagem relaxante (sem sacanagem). Planejara não mais trabalhar às sextas, quando batesse os 50 anos e, por algum tempo, conseguiu seu intento, mas, como ninguém é condutor do próprio barco, as circunstancias passaram a exigi-lo cada vez mais. Felizmente, o dia acabara. Era deixar aquela papelada toda, apagar as luzes e ir para casa, fazer o que mais gostava: brincar com seus cachorros, oferecendo-lhes o rosto, para ser lambido e os braços, para serem mordidos, com carinho. Estava perdido nestes pensamentos, quando, já na portaria, foi avisado que um parente o aguardava. Parente, mas que parente o procuraria, às 6 da tarde de uma sexta-feira? Sentiu uma pontada no estomago, sinal que má noticia vinha pela frente. Entrou no escritório e apenas de passagem, olhou para o homem, sentado na sala-de-espera. Devia ter em torno de 40 anos, magro, estatura mediana, cabelos pretos. A fisionomia não lhe era estranha, mas não dava para associá-lo a qualquer parente. Sua secretaria informou que ele não dissera o nome e que já fazia uma hora, que esperava. Quando ele entrou, encaminhou-o à mesa de reunião, o que foi prontamente recusado:
- ‘’se você não se importa, prefiro o sofá, é mais informal.’’
Ele torceu o nariz. Odiava ser chamado de ‘’você’’, por pessoas desconhecidas. Era pronome de tratamento, que se conquista. Mas lá estava o homem, já instalado no sofá, cigarro aceso entre os dedos. Puxou a cadeira, sentou-se defronte e, após alguns segundos de sepulcral silencio, iniciou o diálogo:
- ‘’poderíamos começar nos apresentando e, depois, o senhor me diz em que lhe posso ser útil. Afinal, qual nossa relação de parentesco?‘’
- ‘’até aceito que você não me reconheça, afinal, quando nos vimos, pela ultima vez, você tinha 16 anos, tinha vindo estudar em São Paulo e estava fazendo vestibular. E eu já era mais velho do que hoje’’.
Como aquele homem, até agora um estranho, sabia detalhes longínquos de sua vida? E como alguém podia, hoje, ser mais jovem que ontem?
- ‘’Afinal – perguntei – quem é o senhor e o que quer de mim?’’
Ele sorriu, levantou-se, dirigiu-se até a parede, onde tinha vários posters de familiares e, apontando ao último à direita, apenas murmurou:
- ‘’estou aqui, você não se lembra? Foi nosso ultimo natal.’’
A voz calou-lhe na garganta, o suor empapou-lhe a camisa e o coração ameaçava pular pela boca. Aquele homem era seu pai, que, vendo sua aflição, afagou seus ralos cabelos, prendeu suas mãos entre as dele, massageando-as, suavemente. Minutos depois, quando percebeu que ele recuperava um mínimo de lucidez, sentou-o a seu lado, no sofá e, sem desprender as mãos, falou:
- ‘’fique tão calmo, quanto possível e preste atenção: na verdade era para eu levá-lo, hoje, agora, daqui mesmo. Mas você sabe como é sua mãe. Com aquele jeitinho dela, pediu e repediu e ele concordou em deixar você ficar mais um tempo, não mais que um ano. Tempo para você arrumar suas coisas, receber aquele dinheiro que vai dar segurança a sua família, pedir desculpas a uns e outros pelos erros e ressentimentos, preparar-se, enfim, para a viagem definitiva. Quando chegar a hora, eu voltarei para buscá-lo.’’
Atônito, quase sem voz, perguntou:
- ‘’e pra onde o senhor vai me levar, ou melhor, pra onde eu vou?’’

- ‘’não sei, - respondeu ele -. Levo você até certo ponto e, depois, você segue sozinho, por outro caminho, que não conheço, nem sei onde vai dar. Aproveite o tempo, que sua mãe conseguiu para você, para pensar e, se possível, redimir seus erros.Confesso que esperava mais de você, mas não estou totalmente decepcionado... Ah, outra coisa: não fale deste nosso encontro, nem para sua mulher. E agradeça, todos os dias, a sua mãe, por esta prorrogação que ela conseguiu para você. Agora, eu vou embora. Até qualquer hora.’’ E saiu, com aquele seu passo miúdo e  estático,  enquanto ele apenas olhava o retrato na parede, o pai, sentado à cabeceira da mesa. Nosso último natal. Será, também, o próximo, seu último natal?