Sempre fui leitor compulsivo e compulsivo comprador de
livros. Antes de vir morar em São Paulo, lá do interior de Minas, comprava-os,
pelo reembolso postal, de uma editora chamada ‘’dos Gusmões’’, situada, na rua do mesmo nome e que eu imaginava
ladeada de acácias e flamboyants. Quando aqui cheguei, para fazer o colegial, e
prosseguir meus estudos, quis conhecer a dita editora, que me fizera, nos
livros mandados, viajar os sonhos de adolescente. Para minha decepção, a Rua
dos Gusmões ficava no coração da ‘’boca do lixo’’, ponto final das prostitutas
decadentes. Como a grana era sempre curta, procurava, ou melhor, ‘’garimpava’’, nos ‘’sebos’’, livros que me interessavam. Quando a situação melhorou,
passei a freqüentar a ‘’Freitas Bastos’’,
ali na XV de Novembro e que não existe mais e que tinha filial, no Rio, na Rua
Sete de Setembro. E os livros foram se acumulando, alguns – confesso
timidamente – não lidos, outros, percorridos várias vezes, como ‘’Judas o Obscuro’’, de Thomas Hardy que,
no meu mendigo saber, considero a obra-prima da literatura mundial. Quando
vivia dependurado na ‘’ponte-aérea’’,
antes do embarque, passava pela livraria do aeroporto e sempre achava um ‘’companheiro’’, para ler no avião. Apesar
das ‘’megastore’’, espalhadas pelos
shoppings, não perdi o vício de percorrer os sebos que se concentram em torno
da Praça João Mendes. Quase ao lado do Tribunal de Justiça, há um muito bom, em
cuja porta, além dos livros, se oferecem mulheres, que Vinicius chamou as ‘’jovens putas da tarde’’. Do outro lado
da praça, inaugurando a Av. Liberdade, localiza-se outro, que ocupa dois
andares do prédio. Se você procura um livro específico, o vendedor localiza-o
através do computador. Se você prefere ‘’garimpar’’
– o que é o meu caso – basta percorrer as seções, onde os livros estão
separados por assunto. Sebo não é lugar de gente apressada. Neles encontrei
algumas pedras preciosas, não só pela obra em si, mas pelas dedicatórias,
contidas: quatro volumes de ‘’Os
Sertões’’, do Padre Antonio Vieira, dedicados a ‘’D. João Chrysostomo D’Almeida Pessoa, Arcebispo Senhor de Braga e Primaz
das Hespanhas’’; ‘’Caminhos de João
Brandão’’, dedicado, pelo autor, ninguém menos do que Carlos Drumond De
Andrade, ‘’com suave afeto, ao querido
Paulo’’; ‘’O Cão Negro’’,
ofertado, pelo autor, Carlos Lacerda, ‘’ao
companheiro de tantas peregrinações’’, um certo Raul que, imagino possa ser Raul Brunini,
amigo e correligionário de Lacerda, na extinta UDN. Saber que as canetas, que
escreveram tais dedicatórias, estavam nas mãos de Drumond e Lacerda,
arrepiam-me e me concede, até, inefável intimidade com os dois gênios, um na
poesia e outro na política. E há inúmeras outras dedicatórias, livros
presenteados a alguém por alguém. Fico a imaginar os caminhos percorridos por
esses livros, desde o momento, em que alguém os comprou, até os desvios que os
trouxeram a estes velhos prédios. Dos meus, tenho-os arrumados em estantes,
muitos perdidos, em várias mudanças. Minha esposa preferiria que eu os
repassasse, para que outros os lessem. Seria gesto nobre, mas, egoísta que sou,
tenho com eles relação, quase patológica. Visito-os, no espaço que ocupam.
Converso com eles e, de vários, lembro-me, até, de quando os adquiri.
Participam da historia de minha vida. Alguns, como ‘’Ulisses’’, de James Joyce, venceram minha persistência e eu não
consegui desvendá-los. Outros, como ‘’Germinal’’,
de Zola, ajudaram-me a sedimentar minhas convicções. Com certeza, algum dia,
estarão em sebos, como os que gosto de percorrer, mas, não importa, porque,
primeiro, não estarei mais aqui, para assistir ao êxodo e, segundo, porque,
espalhados nos sebos da cidade, qualquer cidade, poderão ser adotados, no mesmo
gesto prazeroso que me faz estender o braço para alcançá-los.
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