Aproveitando a ensolarada manhã de domingo, tirei a cadeira
de praia para fora da garagem e me pus a ler. Minutos depois, Rodolfo, meu
politizado pastor alemão, postou-se a meu lado. Queria jogar conversa fora e
eu, de boa vontade, travei com ele ameno diálogo, que reproduzo:
Rodolfo: “o que você
está lendo, ou melhor, por que você lê tanto?”
Eu: “um romance antigo
de Clarice Lispector, chamado “A hora da estrela”, que narra as desventuras de
uma empregada doméstica. Quanto a porque leio, ler preenche meu tempo e é uma
espécie de rápido banho na alma e, além disto, tira-me da realidade.”
Rodolfo: “você já leu
todos os livros, que estão em suas estantes e o que eles lhe ensinaram?”
Eu: “provavelmente,
alguns tenha deixado no meio e outros tenha lido várias vezes, como os de Eça de Queirós. Agora, não sei
dizer o que eles me ensinaram, até porque romances, poesias não têm, como
finalidade, ensinar. Isto é tarefa dos livros didáticos, que nos enchem de
informações que vamos jogando fora, ao longo da vida. Não que sejam inúteis,
apenas tornam-se inúteis, porque nada têm a ver com nossa formação
profissional. Estudei matemática, física, química, biologia e, hoje, sem a
maquininha de calcular, sou incapaz de calcular percentagem. Acho que uma
reforma no ensino, que é urgente, deveria priorizar o interesse do aluno.”
Rodolfo: “então você
está me dizendo que não sabe mais nada
do que aprendeu na escola? E dos livros, que leu, você se lembra?”
Eu: “sempre fica um pouco daquilo que se leu. O ser humano é
profundamente vaidoso e gosta de se exibir, citando frases e seus autores. Pura
ostentação! Até uns 20 anos atrás, eu era muito doido e fazia um resumo de cada
livro que lia: o nome do livro, do autor e o enredo. Quando fiz a última
mudança dos livros, joguei tudo fora, pela sua absoluta inutilidade. Aliás,
tenho pensando muito em me desfazer de todos meus livros, que os guardo, apenas
pelo valor sentimental.”
Rodolfo: “mas isto não
seria apagar o passado ou, como você mesmo me disse, certa vez, apagar sua
história?”
Eu: “bobagens que a gente diz, em momentos de fragilidade
emocional. Na verdade, o passado se desfaz por si mesmo, a ponto de não
sabermos se, aquele momento ,nós realmente o vivemos, ou não foi mera ficção,
tirada de livro ou filme. Quando se chega a minha idade, só existe o presente,
pois perdemos o direito de conjugar o verbo, qualquer verbo, no futuro. A vida,
de fato, termina, quando se extingue esse direito, eu diria, lá pelos 50 anos.
Daí pra frente, somos meros sobreviventes de uma sociedade que, pouco a pouco, nos expele. A velhice, além de
um mal, para os que a ela chegam, é repulsiva para os jovens, porque lhes
revela o melancólico destino que os espera. Na verdade, “velho” e “velhice”,
apenas gramaticalmente são classificados como substantivos, porque são mesmo é
adjetivo e pejorativo. Por isso preciso me desfazer destes livros todos, que
representam o que se foi e o que fui.”
Rodolfo: “mas o que
foi, não foi bom?”
Eu: “confesso que não
me lembro, mas, se foi bom, pior ainda, porque significa que perdi esse
bom e só restou esta dor no joelho, que
me impede de passear mais com você, esta desvontade de sair por aí, vivendo a
alegria da vida.”
Rodolfo: “não sei não,
cara, mas acho que você tá chegando a uma deprê!”
Eu: “que nada, meu
caro, a velhice é que é deprê e nada há de mais ridículo do que velho querendo
passar por jovem, dançando, frequentando academia, diante do olhar de desprezo,
ou, na melhor das hipóteses, de piedade dos jovens. Veja a sabedoria da Nara,
deitada na cama, afastada de nós dois. Você acha que ela está deprê? Se acha,
esta enganado. Ela está tranquila, paciente, esperando o final.”
Vagarosamente, Rodolfo levantou-se e em silêncio, encostou-se
em
Nara, dando-lhe o aconchego de corpo jovem.
E eu, curtindo a exuberante solidão do momento, reforcei o
uísque, que aguara e voltei à leitura.
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