Apenas para contar a história, dei a ela o nome de Isabel.
Fazia o tipo “mignon”, já passava dos
50, um pouco judiada pelas agruras da vida. Contava-me estar casada, há 25 anos
com, digamos, Maurício. Não tinham
filhos, o que, nas circunstâncias atuais, era grande vantagem. O casamento
nunca fora uma fogueira e, nos últimos 5 anos, resumia-se a um “bom dia”, “boa noite”, trocados entre duas pessoas que, de comum, só tinham o
fato de morarem na mesma casa. Ela trabalhava em uma gráfica e ele ocupava
cargo público, no Estado. Nem financeiramente, um dependia do outro. A casa,
modesta, era própria e, como jamais saíam, o que ganhavam era mais do que
suficiente para tocar a vida. E tocar a vida era o que eles vinham fazendo
desde dois anos atrás, quando Maurício teve repentina mudança de comportamento:
passou a reclamar de tudo, que a comida estava fria, a roupa mal passada... No
princípio, chegou a suspeitar que ele arranjara outra, o que, para ela, nada
significava. Quando o questionou sobre isto, ele lhe deu um tapa no rosto, “que ela não ousasse duvidar do caráter dele!”.
Outras agressões, a pretexto de nada, se sucederam e, nessas ocasiões, ela ia
chorar, trancada no banheiro. Uma colega do trabalho sugeriu-lhe procurar a
Delegacia do bairro, ideia logo afastada. Seria colocar mais lenha na fogueira.
Dentro dela brotou um sentimento novo, que germinava, com mais intensidade,
cada vez que sofria nova agressão: passou a sentir ódio por aquele homem, a
quem entregara todos os anos de sua vida e nada recebera em troca, nem mesmo um
filho, - “não quero saber de criança, bagunçando a casa. Só
serve pra dar despesas” – ele repetia sempre que ela vinha com a proposta.
Um dia, arrumando gavetas, ela descobriu um exame, diagnosticando-o como
estéril. Nunca mais tocou no assunto e o sexo foi sepultado por eles. Agora, o
que a alimentava era o ódio e a vontade incontida de se vingar dele, dessas
vinganças que jamais seriam esquecidas. Certa madrugada, acordara assustada, como se tivesse recebido
mensagem do além. Era sua vingança, perfeita e acabada sem chance para ele, que
passaria o resto de sua vida, lembrando-se dela! No dia seguinte, aproveitando
o horário do almoço, correu à Delegacia. Foi atendida pela Dra. Ana,
lindíssima, educada que, com 20 anos de profissão, tinha percorrido vários
distritos policiais, da periferia aos bairros nobres da Capital. Já no terceiro
casamento e, apesar das adversidades enfrentadas, era apaixonada pela vida e
conhecia as mazelas do ser humano. Ana recebeu Isabel em sua sala, bem
arrumada, o retrato da filha – linda – a um canto e, no móvel encostado à
parede, uma enorme imagem de São Miguel Arcanjo. Dra. Ana, com habilidade e
carinho, acalmou Isabel e, somente após alguns minutos, pediu-lhe que relatasse
a razão de sua presença. – “sabe, doutora, sou casada há 25 anos, não
temos filhos, mas
vivemos bem, ou melhor, vivíamos bem. Nos últimos tempos, meu marido ficou
agressivo, me bate e repete que vai me matar. Resolvi fazer uma queixa contra
ele, porque estou com medo. Ontem, ele falou que tem um plano de me envenenar,
vão achar que foi suicídio e ele vai sair limpo!” – “A senhora tem alguma marca de agressão? Podemos instaurar agora mesmo,
inquérito contra ele. A senhora já ouviu falar na Lei Maria da Penha?” – “Desculpe, doutora, mas só quero fazer a
queixa de ameaça, até porque não tenho nenhuma marca de agressão.” A
delegada chamou o escrivão, determinando que se lavrasse o boletim de
ocorrência, que reproduziu a história, contada por Isabel. Pela sua experiência
concluiu que era mais uma briga de marido e mulher, que seria superada com o
tempo. De qualquer maneira, deixaria passar uns dias e intimaria o tal Maurício
para prestar esclarecimentos. Na verdade, acabou se esquecendo de Isabel,
tantos os casos cabeludos que se sucederam: apreensão de grande quantidade de
drogas, pedofilia, 3 roubos, estouro de caixa de banco, tudo isto exigiu
esforço concentrado da Delegada e sua equipe. Era uma segunda-feira, começo de
expediente, Dra. Ana despachava com o escrivão-chefe, quando o investigador Rui
entrou na sala: “desculpe interromper, doutora, mas tem um senhor, bastante
nervoso, ao telefone, dizendo que a esposa amanheceu morta. Ana deu um pulo e
mandou que a ligação lhe fosse transferida. Quando entrou na linha fez apenas
duas perguntas: “qual é o seu nome e como se chama sua esposa?”
Ouviu a resposta que não queria ouvir: “eu
me chamo Maurício e minha esposa Isabel”. Com o coração batendo forte, Ana
deu-lhe ordem para não ligar para mais ninguém, não mexer em nada, que, em
poucos minutos ela chegaria lá, como realmente chegou, ela e o investigador
Rui, pessoa de irrestrita confiança, que se tornara seu amigo ou, como dizia a
lenda, mais do que seu amigo. A casa, sobrado geminado, estava às escuras e,
quando Dra. Ana tocou a campainha, a porta foi aberta por um homem, aspecto
físico deplorável, barba por fazer, ainda vestindo surrado pijama: era Maurício,
que guiou a Delegada e o investigador escada acima, até o quarto do casal, a
recém-morta, barriga para cima, os braços estendidos ao longo do corpo, com
indecente sorriso no rosto. – “você mexeu
nela ou em alguma coisa?”, perguntou a Delegada. “apenas fechei-lhe os olhos”, respondeu Maurício. Ana conduziu
Maurício para o andar abaixo, deixando ao investigador a tarefa de recolher
evidências que pudessem elucidar a morte de Isabel. A competência era da
Delegacia de Homicídio, mas só a chamaria, depois de conversar com Maurício, a
quem pediu que contasse os fatos, sem não antes adverti-lo: “por enquanto, o
senhor não é oficialmente suspeito, mas tudo que disser estarei gravando. Por isso, se quiser se
manter em silêncio, é direito seu” – “Não
tenho nada para esconder doutora! Eu e Isabel já não vivíamos bem e, nos
últimos dias ela andava depressiva. Ontem, depois que cheguei do trabalho,
tivemos uma discussão feia, por causa de bobagem, nem jantei, tomei banho, fui
deitar e ela ficou na sala, nem vi a hora que foi para o quarto. Quando
acordei, hoje cedo, chamei por ela, que não se mexeu, estava fria, escutei o
coração, nada. Foi aí que liguei para a Delegacia, desesperado.” A Delegada
esperou, sem interromper, a explicação de Maurício e, só então, perguntou: - “nestas brigas constantes, que vocês tiveram,
conforme o senhor mesmo está contando, alguma vez o senhor a agrediu?” - “Que
que isto, doutora, sou da paz! Eram brigas, com muitos gritos, mas sem agressão.”
– “O senhor tem ou teve outras mulheres,
durante o casamento, seu Maurício?”, quis saber a delegada. Absurdamente
constrangido, voz trêmula, ele respondeu: “sabe
doutora, faz muito tempo, pelo menos uns dois anos ou mais, que eu e Isabel não tínhamos relações sexuais. No
princípio, eu a procurava e ela sempre me afastava, com uma desculpa qualquer.
Estou com 55 anos, ainda tenho minhas necessidades. Então, faz alguns meses
comecei a sair com uma colega de trabalho, estamos nos gostando. Estava esperando
o momento certo para conversar com Isabel, a gente se separar, não fazia
sentido continuar juntos se odiando, se magoando...” De repente, o
investigador Rui, descendo as escadas e carregando um pequeno saco, com alguns
objetos, chamou a Delegada, em particular. Dentro do saco, a meio alguns
pertences da falecida, havia 3 caixas vazias de “lexotan” 6 mg e um copo. A Delegada recolheu tudo, telefonou
providenciando a remoção do corpo para o IML e, após a saída do mesmo, levou
Maurício para a Delegacia, a fim de prestar depoimento formal, que, quase por
inteiro, reproduziu a conversa gravada. A Dra. Ana apenas quis saber se Isabel
tomava remédio para dormir, o que foi negado por Maurício, recomendado a não
sair da cidade, sem conhecimento da Delegada. Uma semana depois chegou o
resultado da autópsia: Isabel tinha morrido, após ingerir 30 comprimidos de “lexotan”, que tinham sido dissolvidos em
meio copo d’agua. A perícia, realizada no copo, indicava a presença das
impressões digitais de Maurício. E, para completar, a receita, com que o “tarja preta” foi comprado, estava em nome de Maurício Antunes dos
Santos. Era uma ensolarada manhã de sábado. Como de costume, Maurício abriu a
porta de casa para ir à padaria, quando foi abordado e algemado pela Delegada Ana, que lhe exibiu
mandado de prisão preventiva. Estava sendo acusado de ter matado a mulher.
Gritou, chorou, dizendo-se inocente, que nunca matara, nem mesmo barata. Ficou preso
3 meses, até terminar o Inquérito. Foi denunciado por homicídio, triplamente
qualificado: motivo torpe (queria se livrar da esposa para ficar com a amante),
emprego de veneno e com recurso que impossibilitou a defesa da vitima. A pena
podia chegar a 30 anos de reclusão. Os vizinhos depuseram contra ele, dizendo
ouvir discussões, sempre os gritos dele e choro de mulher. Nem seu advogado
acreditava nele e dizia que ia lutar para que a pena não fosse alta, mas que
ele não esperasse menos de 15 anos de prisão. Foi-lhe concedido direito de
esperar o julgamento, em liberdade. Ele, somente ele, sabia ser inocente.
Revoltado, mudou de bairro. Os vizinhos o desprezavam, olhavam-no, como se
fosse um verme. Na repartição, fora colocado a um canto, transformado em
inútil. Tirou férias e depois licença premio. Numa segunda-feira, jogado no
sofá, vendo televisão seu advogado liga para avisar que o julgamento estava
marcado: seria em 02 meses. O inferno, que havia se amainado, voltou a arder
com intensidade. Seria jogado em prisão fétida, onde passaria talvez, o resto
de sua vida, por crime que não cometera. Saiu, andando sem rumo, quando de
repente, viu-se à porta do “Copan”,
um dos edifícios mais altos da cidade. Subiu até a cobertura e, ao lado de um
casal de namorados que, entre carinhos, contemplava a paisagem, subiu na sacada
e voou em direção à liberdade.
Corta para o dia
anterior à morte de Isabel: Maurício, de vez em quando, tomava remédio para dormir. Ela encontrou,
na gaveta onde ele guardava documentos, um receituário de 3 caixas de “lexotan”, 6 mg, já preenchido, que foi
comprado, em farmácia do centro, pelo motoboy da empresa. Seu plano de vingança
surgiu, pronto. À
noite, ela e Maurício
tiveram áspero bate-boca, porque a salada, segundo ele, estava sem gosto. Ele,
deixando a mesa sem comer, saiu xingando em direção ao quarto, cuja porta bateu
com força. Ela ficou na sala, olhando a televisão, sem ver. Sua cabeça girava
em torno do plano de vingança. Notou que sobre a mesa, a meio à comida mal tocada,
Maurício deixara o copo d’agua, bebido pela metade. O plano de vingança se
completava: cuidadosamente, segurou o copo, usando um guardanapo e o levou para
a copa. Derreteu todos os comprimidos na água, bebendo seu conteúdo de um único
gole. Adormeceu com doce sorriso nos lábios... o sorriso da vingança.
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