segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

A hora e a vez de Nara



Amigo muito querido envia-me correspondência eletrônica, acusando-me de discriminador porque, em meus escritos, refiro-me a Rodolfo, converso com ele, mas trato Nara, apenas como paisagem. Contesto o amigo e explico: Nara acabou por completar 11 anos que,  convertidos para idade humana, corresponde a 77 anos. Em resumo: é velha senhora, com seus conceitos sobre a vida, definitivamente estratificados. Não tem má índole, mas despreza o ser humano, por considerá-lo hipócrita e egoísta. Não guarda ódio, em seu coração, a não ser pelo homem, que faz a leitura do consumo de luz e gás e pelo motoqueiro, que traz pizza ou comida chinesa. Recebeu Rodolfo com carinho, ensinou-o a proteger a casa e transmitiu-lhe o rancor pelas pessoas, acima referidas. Certa vez questionei-lhe a indiossincrasia por aqueles trabalhadores. Respondeu-me, afastando a idéia de preconceito:- “minha raiva não é do motoqueiro em si, mas do barulho constante e ensurdecedor, que ele provoca. Quanto ao leitor do consumo, quase certeza, que ele acresce na leitura, para aumentar-lhe a conta. Na verdade, defendo seus interesses financeiros, porque o vejo sair às 8 da manhã e chegar às 7 da noite, sempre com ar cansado e com jeito de que as coisas não correram tão bem, como você gostaria”. Expliquei-lhe que não era bem assim, que os fevereiros acumulados começavam a pesar, além da conta, que nosso sistema judiciário era paquidérmico e que a crise exigia que trabalhássemos mais para manter o padrão. Nara chegou a ser cruel:- “quando cheguei aqui, há pouco mais de 10, anos, vocês eram mais alegres, saíam, viajavam, davam festas. Agora é constante mesmice, tirando Aline, que é sempre esfusiante, vocês parecem ter desistido da vida”. Quis-lhe trazer à realidade:- “você também mudou muito, nestes anos Nara. Já não corre, anda e, quando persegue os gatos, parece o bombeiro que corre com a água, mas não sabe onde é o incêndio. Quando eu chego, à noite, enquanto Rodolfo pula no portão para receber-me, você fica deitada. Não que você não goste de mim. É o cansaço, a inação que os anos nos trazem.  Os velhos, como eu e você, somos mais contemplativos”. – “É, mas você e o Rodolfo ficam nesta conversa chata e interminável sobre política, economia. Às Vezes, nem tenho vontade de passear com vocês, vou apenas para fazer companhia. O Rodolfo, tudo bem, ainda é jovem, tem a alma de sonhos povoada, mas você, burro velho, com estes livros todos que leu, já devia ter percebido que não pode mudar nada, que é apenas peça da engrenagem. Veja, por exemplo, você soltou até foguete, quando Dilma Rousseff foi despejada. E daí, o que mudou em sua vida ou, até mesmo, na vida dos meninos? O ideal pelo ideal não leva a nada. È por isso que me mantenho alheia ao papo furado, entre você e o Rodolfo. Para mim – e deveria, também, ser para você – a vida é feita de coisas simples: a água fresca, a ração farta e a cama macia. Você vive reclamando que o verão está passando e você não aproveita. Ora, tire uma semana, vai pro Rio ou Arraial D’Ajuda, ou você se acha tão importante assim, que vai fazer falta? Como dizia minha mãe: “pretensão é água benta...””
Recosto-me no sofá, abro a primeira cerveja e constato que, mesmo sem o saber, Nara esteve com Fernando Pessoa, na “Tabacaria” – “O mundo é para quem nasce para o conquistar e não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão”. Sabida, esta Nara!

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