sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

A descoberta de outro



Tenho a curiosidade incontida de deitar reparo nas pessoas que andam pelas ruas e rotulá-las, pelo ritmo do passo, pela maneira de olhar entorno, pelos gestos espontâneos. É claro que as avalio através de mim mesmo, como me sinto, quando ando apressado ou devagar, se busco com o olhar alguma coisa ou o significado dela, ou se apenas olho sem ver, mergulhado que estou em mim mesmo. E lá estava o homem, parado na esquina, como a esperar alguém, ou o semáforo lhe franquear a passagem. Fiquei a certa distância, apreciando seu não movimento. Nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, qualquer coisa entre 60 ou 70, sobriamente vestido, sem elegância, mas bem composto: terno escuro, camisa branca, sapato preto, limpo, mas graxa vencida, atestada pelo pouco brilho. O semáforo abriu e fechou seguidas vezes e ele ali, estático, fora do tempo e dos fazeres. Eu, que também seguia meio sem  rumo, aproximei-me, como se tivesse todas as soluções no bolso:- “posso ajudá-lo em alguma coisa, atravessar a rua, por exemplo?” Ele, sem nada dizer, segurou-me firme pelo braço e me conduziu, como se cego fosse, para ao bar da esquina, sentando-me na cadeira, em mesa colocada na calçada. Durante minutos, na minha frente, olhou-me nos olhos, com o constrangimento calando minha voz. Finalmente rompeu o silêncio: “que tem o senhor para me oferecer? Dinheiro, não preciso, tenho-o acima de minhas necessidades. Conselhos, além de inúteis, seria preciso que o senhor soubesse de meus problemas, das decisões a tomar e já adianto que não as tenho. Por isso, para mim, o senhor é pessoa inútil. Será que o simples fato de eu estar parado não é apenas porque eu queria ficar parado? Se eu estivesse parado, imóvel, na praia, debaixo do guarda sol, o senhor iria me oferecer ajuda? Que força ou poder o senhor julga ter para me oferecer ajuda, aqui nesta avenida ou em praia qualquer, debaixo de guarda-sol qualquer?” Sem resposta, aproveitei o silêncio que ressurgiu, chamei o garçom e pedi uma cerveja que foi trazida com dois copos. Servi-me, mas não ousei servi-lo. Qualquer reação, como atirar-me o líquido ao rosto, seria possível. Ele continuava impassível, olhando-me ou melhor, estuprando-me os olhos. Num gesto de extrema coragem mantive o olhar. Dois velhos, em silêncio, olhos fixos um no outro, alheios ao barulho da rua, dos carros, buzinando raivosos,  das pessoas indo e vindo. De repente ele deu estrondosa gargalhada, encheu o copo e brindou como brindam íntimos amigos que se encontram, sem hora marcada. Era outro homem, que voltava a falar: - “lembra-se da história de Diogenes, que percorreu a cidade, carregando lanterna, à procura de um único homem honesto? Pois eu estava parado, há mais de uma hora, naquela esquina, não à procura de homem honesto, mas de alguém que, por cuidados ou, até mesmo, curiosidade, me perguntasse o que estava fazendo ali, imóvel. Alguém que se incomodasse comigo. Sabe, já não me recordo da última vez que recebi um abraço, desses, que nos transmitem calor. Beijo, então, nem pensar e olha que não falo de beijo de língua, que mistura nossas intimidades, mas simples “bitoca”, isto a que hoje chamam “selinho”!. Senti-me fantasma, ali, imperceptivelmente parado, até que surgiu você, dando-me a esperança, não desejada, que o ser humano talvez ainda seja possível. Por isso me irritei com você, ofendendo-o até, e você se manteve impassível, apenas olhando-me nos olhos, como se quisesse desvendar recôndito segredo ou me julgando louco. Nem uma coisa, nem outra. Tal era seu espanto que não pude deixar de gargalhar e peço desculpas por isto. E, para provar o quanto lhe sou grato, vou lhe render a maior e mais definitiva homenagem”. O homem se afastou dois passos e antes que eu, ou qualquer outra pessoa pudesse esboçar reação, ele sacou a arma da cintura e, com sorriso nos lábios, estourou os miolos, contaminando de sangue a cerveja, que descansava em meu copo.



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