Chego da missa dominical e Rodolfo me espera, no portão, com
ar indagador: -“vamos ao parque, hoje?”, pergunta
ele.
-“apenas o tempo de
trocar a roupa e tomar um café.”, respondo.
Ele arremata:
-“então vou lhe pedir
um favor: vamos andar por entre as árvores, onde não tem ninguém, pois tenho
assunto muito serio, a discutir com você.”
Entrei em casa, fiz o que me propunha fazer, sempre matutando
na proposta do Rodolfo. Sobre o que queria ele conversar, de tão grave, em
pleno domingo de carnaval? Roupa trocada, café tomado, lá fui eu enfrentar a
fera. Nara, por ser a mais velha, tem prioridade em colocar a coleira.
Recusou-se:
“Desculpe, mas não vou
com vocês. Não estou mais na idade de subir e descer morro, no meio do mato, os
gravetos me incomodam a pata. Além do mais, papo cabeça, em pleno carnaval, é
dose. Fico por aqui, na volta você me faz uns afagos e tudo bem!”
E lá fomos, Rodolfo e eu, para nosso passeio. Entramos no
parque, tomamos o lado direito, afastando-nos da pista e nos dirigindo ao
caminho alternativo. Curiosidade incontida, fui logo perguntando:
“Então Rodolfo, qual o
problema que o aflige?”
“A mim, nenhum! Na
verdade o problema é seu. Você se considera um hipócrita?”
A violência da pergunta me fez estancar, afinal não era
pergunta sem causa a que se pudesse responder com simples “sim” ou “não”.
-“Olha, Rodolfo,
primeiro é preciso relativizar o conceito de hipócrita, que, em sentido largo,
significa “falso”, “fingido”. “Todos nós, em determinadas circunstâncias, temos
que ser fingidos, até para preservar o próximo. A sinceridade, que é o oposto
da hipocrisia, às vezes, ofende e pode gerar antipatia. Vou dar um exemplo
simples: mulher, já na faixa dos 60, vai a um cirurgião plástico e faz uma
recauchutagem, estica o rosto, tira gordura localizada etc, etc. ela o
encontra, você que é amigo, o que responde, quando ela pergunta “e aí, como
fiquei?” Mesmo que não tenha feito qualquer diferença, mesmo que ela tenha
ficado com aquele eterno ar de quem tomou um susto, o que você diz: “ficou uma
porcaria”, ou “nem reconheci, pensei que fosse sua filha!” Você, além de amigo,
é educado e, pelos dois motivos, dará a segunda resposta. Você estará sendo
hipócrita? Em muitas situações, a hipocrisia, não só é sinônimo de boa educação,
mas também imperiosa regra de convivência social. Mas, afinal, por que a
pergunta?”
-“Você banalizou a
conversa, que é mais seria e profunda. É que o Papa falou que é preferível ser
ateu a ser cristão hipócrita. E aí, como fica você, que vai à missa, comunga,
reza todos os dias, tem altar em casa. Desculpe a sinceridade, mas, nesta fita,
pelo que conheço, você ficou mal.”
“Aí que você se engana
Rodolfo. Também tomei conhecimento da frase do Papa que, com todo o respeito
que me merece Sua Santidade, foi infeliz, porque deveria ter contextualizado
seu pensamento, que, se for tomado, de modo absoluto, fecha a propria Igreja e
rescinde o contrato com todos os cristãos, por descumprimento das obrigações
contratuais. Vamos começar pela propria Igreja, instituição formada por homens
repletos de “pecados capitais”, como a inveja, a soberba, ou você acha que um
sacerdote chega a Cardeal e até mesmo a Papa, sem infringir preceitos cristãos?
E olha que não estou falando em pedofilia, homossexualismo, desonestidade. Tive
a oportunidade de “viver” do lado de dentro do altar e convivi com ações que
nada tinham de cristãs. Deve ser a Igreja fechada por isso, por esta
“hipocrisia”, para usar a linguagem do Papa? Claro que não! Os sacerdotes,
antes de os ser, são homens, que se propõem à santidade, mas, como homens,
estão sujeitos a fraquezas, desvios de conduta. Quanto a nós, cristãos, vivendo
em uma cidade competitiva, na base do matar ou morrer, violamos, assiduamente,
as regras do cristianismo. Quem passa batido pelos 10 mandamentos, quem não
comete os “pecados capitais”? Vou mais longe: quem passou pela vida, por mais
honrado que fosse, sem ter cometido ato de hipocrisia? Ora, se vamos à Igreja,
se rezamos é, também, para pedir perdão pelos pecados e a propria missa começa
pela “ato penitencial”, onde reconhecemos ser pecadores e invocamos a
misericórdia do Pai que, conforme aprendemos desde o catecismo, é amor e
perdão. Por isso, só posso concluir que a frase do Papa foi pronunciada fora de
contexto mais abrangente, ou ele, como bom latino, deixou-se levar pela emoção
do momento.”
Em silencio, Rodolfo arrastou-se para um banco próximo, a
apreciar a mansidão do lago. Não sei se ele aceitou minhas ponderações, mas,
nos demais dias de carnaval, não voltou ao assunto.
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