quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Conversa entre amigos



Liga-me antigo amigo, que não via há largo tempo. Cansara-se de São Paulo, do ‘’pega pra capar’’, que não dá trégua, reuniu seu bem guardado dinheirinho, que não era pouco, e saiu por aí, sem pouso certo. Nunca mais soube dele, nem pelos mais íntimos. Sempre foi socialista convicto e só não ingressou na luta armada, à época do endurecimento do regime militar, porque entendia que esse era o pior caminho para restaurar a democracia... e os fatos provaram que ele tinha razão. Apesar das abismais diferenças ideológicas, éramos amigos. Quem nos visse discutindo, sempre entre chopes e bolinhos de bacalhau, no agitado ‘’João Cem’’, de Moema, apostava que sairíamos a tapas, o que nunca aconteceu, vez que nossa amizade sempre esteve acima das divergências filosóficas. Quando surgiu o PT ele se entusiasmou, ante a possibilidade de a classe operária subir ao poder. Chegou a frequentar reuniões do novo partido, mas tinha a alma indisciplinada para compromissos e rituais. A última vez que nos falamos, ao final do primeiro governo Lula, já perdera um pouco do entusiasmo inicial. Costumava dizer que a ditadura do proletariado não conseguia vencer a corrupção do poder. Mais ou menos assim! Quando me ligou, às vésperas do feriado, vinha de uma temporada na China, para onde pretendia voltar.
- ‘’Você deve estar feliz, com os calhordas de volta à Presidência’’, disse-me ele, convocando-me ao duelo e, como seria guerra de largo curso, convidei-o para um vinho, em minha casa. Para ficarmos mais à vontade, recebo-o em minha modesta biblioteca, isolada dos demais cômodos. Enquanto alinho as taças, os tira-gosto e abro a garrafa, ele percorre as estantes, passa os olhos sobre um ou outro livro e não resiste à observação: - ‘’como pode você, reacionário assumido, ter tantos livros de autores de esquerda?’’ Retruco, preparando as armas: - ‘’primeiro, não sou reacionário, termo que se aplica a vocês que não aceitam a globalização econômica, que sedimentou o liberalismo, única forma de ascensão social. Depois, reconheço que os autores de esquerda, apesar de desconectados com o mundo real, escrevem bem. Além disto, o que a direita pensa, eu já sei, porque a ela pertenço.’’ – E nosso papo seguiu, consumindo três garrafas de honesto ‘’cabernet’’ chileno, ele, parado no tempo, ainda falando em ‘’luta de classes’’, ‘’oligarquia branca escravocrata’’, ‘’exploração do trabalho pelo capital’’, citando Karl Marx e Friedrich Engels, como se vivêssemos o apogeu da Revolução Industrial. Com a língua já pastosa, acusou os Estados Unidos de ‘’fabricarem’’ a crise econômica de 2007, apenas para reestruturarem o neoliberalismo e de serem os responsáveis pelo surgimento do Estado Islâmico. Ouvi meu amigo, embevecido pela sua cultura, mas triste, por vê-lo retido, no tempo. Suas ideias, ornadas por teias de aranha, esclarecem porque a direita cresce na Europa e o melancólico Bernie Sanders abdicou de disputar a presidência dos Estados Unidos. Não chegamos a introduzir o Brasil pós-Dilma, em nosso debate, porque meu amigo, abatido pelo vinho, cochilava na poltrona. Sob protesto dele, o ‘’uber’’ levou-o para casa.  

Correção: ontem, equivocamente, afirmei que Carmen Lucia era a primeira mulher a ocupar a Presidência do Supremo Tribunal Federal. Na verdade, é a segunda, vez que foi antecedida por Ellen Gracie, de incontestável competência e eficiência. Erro meu, advindo dos fevereiros acumulados, que já comprometem minha memória. 

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