sexta-feira, 15 de abril de 2016

Hora de Partir, Hora de Chegar.



Deitado, naquela desconfortável cama de hospital, ele apenas via vultos e vozes, que não conseguia identificar. Lembrava-se, apenas vagamente, do caminhão que, surgindo na contra-mão, colidiu com seu carro. Depois do barulho, o silencio. Não sentia dor, apenas a impossibilidade de identificar e ouvir as pessoas que se aproximavam da cama e balbuciavam coisas, meros ruídos. Nem mesmo se esforçava por tentar mover-se. Sabia que era inútil. De quando em vez, mergulhava na inconsciência. Era quando vinham flashes do passado: ele, menino, tomando banho no rio de águas barrentas; ele, naquela manha de verão, salvo de morrer afogado no mar da barra. De repente, as imagens se apagavam e ele voltava a navegar no escuro. De quando em vez, voltava às vozes e aos vultos. Um dia – ou uma noite – sonhou com a mãe, ela, com aquele eterno xale no pescoço, rindo para ele e estendendo-lhe a mão, a chamá-lo. Ele estendeu as suas e as viu esquálidas, pintadas de manchas senis. Pouco a pouco, pôs-se de pé e seguiu sua mãe, que apenas sorria. As mãos recuperaram a juventude e ele, sem esforço ou cansaço, sempre em silencio, andava, pela areia de uma praia sem fim, as ondas quebrando e, suavemente, lambendo-lhe os pés descalços. Um cão negro, de grande porte, correndo, veio a seu encontro. Era Nero, seu companheiro de infância, que dormia ao pé da cama. O cão cheirou-o, enroscou-se entre suas pernas, exatamente como fazia, quando vadiavam pelas ruas da pequena cidade do interior. Quis abraçá-lo, mas ele desvencilhou-se e passou a correr em volta dele, sem emitir qualquer som. Nenhum ruído, apenas o bater suave das ondas do mar. De repente, após fazer uma curva, sempre guiado pelas mãos da mãe, viu varias pessoas que, à medida que se aproximava, formavam uma grande roda. Começou, pouco a pouco a identificá-las: lá estava o tio Mario que, em criança, levava-o, de bicicleta, para o grupo primário; lá estava sua tia Rosa, em cuja casa sempre havia um delicioso frango com batata; e seus irmãos, o que, julgando-se tenor, cantava trechos de ópera e o outro, alma e vida de boêmio, sempre chegando e partindo; lá estava Fred que, impreterivelmente aos sábados, chegava em sua casa para o aperitivo do almoço; e olha seu amigo Newton que, com ele, nas férias escolares, ambos já no colegial, dividiam a mesa de pôquer; e o Nelson, seu amigo desde primeiro ano de Faculdade; e Lídia, a miúda empregada de sua casa, que tinha a estranha mania de vestir varias roupas, umas sobre as outras; e o Frei Brás, com quem todos gostavam de se confessar, porque ele era surdo. Sua mãe – sempre sorrindo – conduziu-o até o centro da roda, onde estava o pai, com o largo pijama listrado e o cigarro pendurado a um canto da boca. A roda se fechou, os três se abraçaram e só então ele entendeu que morrera e chegara a ‘’seu’’ paraíso: pessoas amadas, mortas como ele, reunidas, em uma praia, sob o sol de verão.


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