Deitado, naquela desconfortável cama de hospital, ele apenas
via vultos e vozes, que não conseguia identificar. Lembrava-se, apenas
vagamente, do caminhão que, surgindo na contra-mão, colidiu com seu carro.
Depois do barulho, o silencio. Não sentia dor, apenas a impossibilidade de
identificar e ouvir as pessoas que se aproximavam da cama e balbuciavam coisas,
meros ruídos. Nem mesmo se esforçava por tentar mover-se. Sabia que era inútil.
De quando em vez, mergulhava na inconsciência. Era quando vinham flashes do
passado: ele, menino, tomando banho no rio de águas barrentas; ele, naquela
manha de verão, salvo de morrer afogado no mar da barra. De repente, as imagens
se apagavam e ele voltava a navegar no escuro. De quando em vez, voltava às
vozes e aos vultos. Um dia – ou uma noite – sonhou com a mãe, ela, com aquele eterno
xale no pescoço, rindo para ele e estendendo-lhe a mão, a chamá-lo. Ele
estendeu as suas e as viu esquálidas, pintadas de manchas senis. Pouco a pouco,
pôs-se de pé e seguiu sua mãe, que apenas sorria. As mãos recuperaram a
juventude e ele, sem esforço ou cansaço, sempre em silencio, andava, pela areia
de uma praia sem fim, as ondas quebrando e, suavemente, lambendo-lhe os pés
descalços. Um cão negro, de grande porte, correndo, veio a seu encontro. Era
Nero, seu companheiro de infância, que dormia ao pé da cama. O cão cheirou-o,
enroscou-se entre suas pernas, exatamente como fazia, quando vadiavam pelas
ruas da pequena cidade do interior. Quis abraçá-lo, mas ele desvencilhou-se e
passou a correr em volta dele, sem emitir qualquer som. Nenhum ruído, apenas o
bater suave das ondas do mar. De repente, após fazer uma curva, sempre guiado
pelas mãos da mãe, viu varias pessoas que, à medida que se aproximava, formavam
uma grande roda. Começou, pouco a pouco a identificá-las: lá estava o tio Mario
que, em criança, levava-o, de bicicleta, para o grupo primário; lá estava sua
tia Rosa, em cuja casa sempre havia um delicioso frango com batata; e seus
irmãos, o que, julgando-se tenor, cantava trechos de ópera e o outro, alma e
vida de boêmio, sempre chegando e partindo; lá estava Fred que,
impreterivelmente aos sábados, chegava em sua casa para o aperitivo do almoço;
e olha seu amigo Newton que, com ele, nas férias escolares, ambos já no colegial,
dividiam a mesa de pôquer; e o Nelson, seu amigo desde primeiro ano de
Faculdade; e Lídia, a miúda empregada de sua casa, que tinha a estranha mania
de vestir varias roupas, umas sobre as outras; e o Frei Brás, com quem todos
gostavam de se confessar, porque ele era surdo. Sua mãe – sempre sorrindo –
conduziu-o até o centro da roda, onde estava o pai, com o largo pijama listrado
e o cigarro pendurado a um canto da boca. A roda se fechou, os três se
abraçaram e só então ele entendeu que morrera e chegara a ‘’seu’’ paraíso: pessoas
amadas, mortas como ele, reunidas, em uma praia, sob o sol de verão.
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