Fim de tarde, boca da noite, recebo, em meu escritório, a
visita de amiga queridíssima, amizade consolidada ao longe de mais de meio
século de convivência diuturna. Além de profissional de altíssimo gabarito –
psicóloga – é guerreira de resistência infinita: em curto espaço de tempo,
perdeu seus únicos filhos, ainda jovens, e o marido (meu companheiro de
infância) e os pais. Restou-lhe a única neta, como razão de viver. Resistir,
quem haveria de? Fiz-me esta pergunta incontáveis vezes e desviava o pensamento,
porque era muito peso para meu pouco pensar. Falamos da vida, do tédio da
velhice, da necessidade de seguir em frente. Não ousei falar de minhas perdas,
ínfimas que as são, comparadas às dela. Ela gasta seu tempo, acompanhando meus
escritos e diz preferir os ‘’líricos’’ aos ‘’políticos’’. Invoco Brecht: ‘’que
tempo é este em que falar de flores é quase um crime, pois importa em calar
sobre tantos horrores?’’ Ela ri, com seu meio sorriso habitual, discordando.
Nossa amizade atravessou o tempo, malgrado abismais diferenças ideológicas. Ela
crê em uma sociedade justa, digna, igualitária. Eu, cada vez mais cético,
confirmo que todo o descaminho se origina no hipócrita conceito de que ‘’todos
são iguais em direitos e obrigações’’, demagogia herdada da Revolução Francesa
e desmentida por ela própria. Aliás, Rousseau, que foi ‘’guru’’ de Robespierre,
apesar de ter falecido antes da Revolução, assevera que ‘’os homens se igualam
nos limites de suas desigualdades’’, o que, com outras palavras, foi repetido
por Rui Barbosa em sua ‘’Oração aos Moços’’, pronunciada cerca de três séculos
depois. Eu e minha amiga pensamos mundos diferentes, o meu mais próximo do
real, o dela meio chegado a um ‘’mundo de fantasia’’. Surpreendo-me que ela,
que levou ‘’tanta porrada na vida’’, para repetir Fernando Pessoa, ainda
acredite no ser humano bom e digno. E nisto reside sua superioridade, não se
vergando ao peso de sua cruz (e que cruz!) e seguindo em frente, com a
suavidade de quem caminha por estrada florida. Nossas diferenças nos unem,
sempre mais e este afeto fez com que nosso papo rolasse, até que a portaria
avisasse que o prédio ia fechar. Cheguei em casa de alma lavada pela água benta
da inteligência meiga de minha amiga. Mesmo sabendo que ela não crê em Deus,
tenho a convicção que é Ele que faz dela esta fortaleza, que aconchega as
pessoas. Sou, sem dúvida, um privilegiado, por tê-la em meu mundo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário