É tempo de quaresma. Dentre outras reflexões, tempo de
extirpar de corações e mentes os grandes ressentimentos, que se perpetuaram e
que nos faz trazer ao presente, com constância, a pessoa, objeto de nossa mágoa
e odiá-la, como se os fatos tivessem acontecido minutos atrás. Como nos ensina
o filósofo Luiz Felipe Pondé, o ressentimento talvez seja a característica que
mais nos distingue dos animais, dito irracionais. Não falo do ressentimento
passageiro, como o gerado pela ‘’fechada’’
levada e que nos faz elogiar a mãe do motorista do outro veículo, ou do
pedreiro que deixou nossa reforma inacabada. São ódios que têm a duração de uma
flor. Falo do ressentimento que se perpetua, que viu nossos cabelos
embranquecerem, mas que permanecem acesos, cicatrizes que nos recordam as
lesões sofridas. Em busca desse ressentimento, para purgá-lo, em tempo de
quaresma, faço minha memória viajar e ei-lo, ele, o ressentimento buscado, que
emerge, fazendo meu sangue ferver, colocando-me faca aos dentes e a vontade de
encontrar o amaldiçoado e picá-lo, em miúdos pedaços. Conto o fato e dou nome
ao indigitado: corria, ou melhor, quase morria o ano de 1971 e, com ele, o
campeonato carioca de futebol. À época, morando no Rio, assistia a todos os
jogos do Botafogo que, leve e solto, caminhava rumo ao título. E não podia ser
diferente, já que, lá no ataque, estavam Jairzinho, Gerson, Roberto e Paulo
Cesar ‘’Caju’’, praticamente o mesmo
da inesquecível seleção brasileira de 70. Eu fizera minha parte para o sucesso
do alvinegro. Mesmo sem ser supersticioso, fui a todos os jogos com a mesma
roupa, sentando no mesmo lugar. A jornada seguira invicta, até porque, lá atrás
estavam Carlos Alberto Torres, o ‘’capita’’
da copa e o feroz Brito. Chegamos à final com o Fluminense, precisando de
medíocre empate. 170 mil torcedores no Maracanã, a esmagadora maioria, por
óbvio, torcedores do ‘’glorioso’’. Até os 40 minutos do segundo tempo persiste
0x0 e o grito de ‘’é campeão’’, parado na garganta e as lágrimas, de incontida
emoção, prontas para serem derramadas. Pois no minuto seguinte vem o
infortúnio: bola cruzada sobre a área botafoguense. O lateral esquerdo do
Fluminense – Marco Antonio, era seu nome – faz escandalosa falta em nosso
goleiro – Ubirajara, será seu nome -, o que permite que outro jogador tricolor
– minha memória bloqueia seu nome – faça o gol, ilegitimamente, vergonhosamente
validado e nosso título esvaiu-se. As lágrimas derramadas alagaram as
arquibancadas do Maracanã. Lembro-me de que fiquei sentado, atônito, vendo o
estádio desligar seus refletores. Tudo se apagou com o tempo, menos o
ressentimento pelo árbitro do jogo. José Marçal Filho, era o nome do ‘’filho do cão’’. Vejo-o, ainda hoje, em
meus piores pesadelos. Odiei-o, ao longo de todos estes anos. Escolhi para
perdoá-lo e até querer bem a ele, nesta quaresma. Inútil pretensão. A faca
ainda resta pronta para dissecá-lo. Talvez, na próxima quaresma...
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