quarta-feira, 22 de abril de 2015

A força do desamor

Aquela seria uma noite para não ser esquecida. Fazia dias que Maria Clara vinha construindo seu plano de vingança. Teria de executá-lo com frieza e habilidade. Sempre soube das aventuras de Luiz Claudio, porque, para essas coisas de traição, os homens consideram as mulheres ingênuas ou imbecis, ou, mais provavelmente, as duas coisas. E com Luiz Claudio não era diferente: as reuniões com clientes, que se estendiam até altas horas; o celular desligado no horário de expediente; os cheiros inusitados, logo para ela que, desde sempre, usava o mesmo perfume; as viagens inesperadas, com retorno para o dia seguinte. Maria Clara nunca correra atrás da verdade, até porque, se a encontrasse, teria que tomar decisão, o que não estava em seus planos. Acabara de completar 25 anos de casamento estável, filhos criados, vida confortável naquele belo apartamento debruçado sobre o Parque do Ibirapuera, Europa, duas vezes por ano, cartão de crédito sem limites. E a verdade é que já não mais fazia questão de sexo. O vulcão, que ardera no passado, restava praticamente extinto. Apesar das óbvias puladas de cerca, Luiz Claudio era atencioso e gentil, até melado, principalmente em lugares públicos. Mas, agora, tudo era diferente. Não era uma simples aventura com uma putinha qualquer. Luiz Claudio estava nitidamente apaixonado. Os sinais? Todos. Ficava horas intermináveis, olhando para o vazio; trancava-se, na biblioteca, ao pé de Tom e Vinicius e até dera para escrever poesias, ridículas, diga-se de passagem, mas sempre falando de amores proibidos. Ele, que não demorava mais do que minutos para se aprontar, passara a gastar tempo indeterminado: gravata, combinando com camisa e meia, hábitos que jamais a o perseguiram. A gentileza de toda uma vida, fora substituída por uma quase rispidez. Até surgiu aquela inesperada viagem de uma semana para os Estados Unidos, ele fazendo questão de arrumar a própria mala, repleta de roupas verânicas, incompatíveis com o quase dezembro americano.
- ‘’ Maria Clara, é Rômulo, preciso falar com você. Podemos almoçar, amanhã?’’
Rômulo era sócio de Luiz Claudio, mas, apesar disso, pouco contato tinha com ele. Ficara viúvo, quando sua esposa morreu em um acidente de carro, ele dirigindo. A partir daí, passou a viver enclausurado e só saía de casa para o trabalho e, aos domingos, ia ao cemitério, onde ficava, por intermináveis horas, conversando com a falecida. Por isso, Maria Clara sentiu um frio na barriga, quando recebeu o convite para o almoço. Esperou o dia seguinte com incontida ansiedade e chegou muito antes da hora marcada, o que a obrigou a dar varias voltas no quarteirão, antes de estacionar o carro à porta daquele centenário, quase lúgubre sobrado, onde estava instalado o restaurante, escolhido por Rômulo. O ‘’maitre’’ a conduziu a uma mesa, ao fundo, afastado de ouvidos alheios, onde ele já a esperava, vestindo roupa, que se transformara em uniforme, desde a morte da esposa: terno preto, gravata idem e camisa branca. Mal formulados os pedidos, foi direto ao assunto:
- ‘’Maria Clara, apesar de nossa quase nenhuma convivência, saiba que eu sempre tive muita admiração por você e é, em nome dela, que decidi contar-lhe a loucura que o Luiz Claudio está por fazer. Veja que ele arranjou uma garota, quase da idade da filha de vocês, diz que está apaixonado, que vai jogar tudo pro alto, inclusive você e vai viver com essa moça, provavelmente em Salvador, para onde foram. Essa historia de Estados Unidos, é conversa fiada. Imagina que ele propôs vender-me a parte dele no escritório, só para curtir essa piranha, se você me permite o termo chulo. Conversei muito com ele, tentei convence-lo que tudo isto é uma loucura, mas ele está ensandecido... ‘’A partir daí, Maria Clara não mais ouvia Rômulo, apenas olhava-o, peito apertado, faca enfiada nas costas. É claro que Luiz Claudio sabia que ela, pelo menos, desconfiava de suas aventuras amorosas e contemporizava, pelos filhos, pela família e pela segurança, que ele dava, não apenas material. Luiz Claudio era ponderado, atencioso... carinhoso, até. Rômulo falava em divisão de patrimônio, pensão alimentícia, palavras que lhe soavam estranhas, ela, distante, viajando nos 25 anos de casamento, desde o dia em que conhecera Luiz Claudio, num show dos ‘’novos baianos.’’ Não, não podia mais ficar ali, ouvindo Rômulo, com roupa e voz de ‘’para defunto’’, falar do enterro de sua vida com Luiz Claudio. Pegou a bolsa, pediu desculpas e foi embora. Em casa, primeiro o choro da tristeza, depois o do ódio. Uma chuva fria caia naquela tarde de quase inverno e ela se deixou ficar, deitada no sofá da sala, alma rasgada, pensando em tudo e em nada, ao mesmo tempo. Ali se deixou ficar, até que a noite escureceu o dia. Precisava dividir aquele sofrimento com alguém, que não fossem os filhos, cada qual cuidando de suas vidas. Ligou para a mãe, convidando-se para jantar com ela. Dª Eliana, já passada dos 70 anos, viúva desde os 60, também sofrera com as infidelidades do marido, até que um dia, simplesmente botou-o porta afora. Prezada demais sua dignidade, para conviver com um homem, cheirando a bebida e perfume barato. Quando ele morreu, 2 anos após a separação, ela nem mesmo foi ao enterro. ‘’Eu já o tinha enterrado, antes’’, justificou-se a Maria Clara, a quem recebeu já antevendo que havia ‘’algo de pobre, no reino da Dinamarca’’, expressão que gostava de usar, em situações adversas. Maria Clara derramou seu pranto e sua mágoa, enquanto a mãe, sem interferir, ouvia-a, fazendo a taça de vinho dançar, em suas mãos. Apenas quando a filha parou de falar, passados alguns minutos de sepulcral silencio, Eliana foi se sentar ao lado da filha, acariciando lhe as mãos:
- ‘’Maria Clara, não vou lhe dizer o que você poderia ter feito, para evitar o que está acontecendo, se é que havia alguma coisa a fazer. Importa é saber o que você vai fazer e, quanto a isto, só há dois caminhos; a vingança ou a resignação. Se você ainda ama Luiz Claudio, a resignação não vai funcionar, trará dores intermináveis. Aí a solução é a vingança, deverá ser forte, marcante, que realmente traga efeitos, sofrimento real para ele. Mas, se o amor acabou, se é simplesmente questão de amor-próprio, vire a página, vida que segue. Vai viajar, correr mundo, passa uns 60 dias fora, de repente você encontra outra pessoa.’’
Depois conversaram amenidades, Eliana quis saber dos netos e acabou por convencer Maria Clara a dormir por lá mesmo.

O retorno de Luiz Claudio estava marcado para o dia seguinte e Maria Clara já tinha pronta a vingança. Seguira o conselho da mãe: o amor, que ainda sentia por Luiz Claudio, os filhos, as dificuldades passadas juntos, a dedicação a isto que chamam lar, não aceitavam simples resignação e, portanto, a solução seria a vingança, e forte e marcante, como sugeria a mãe. Por volta das 11 horas, Luiz Claudio ligou: chegara, viagem cansativa, teria que passar pelo escritório, estaria em casa por volta das 8 da noite. Maria Clara esmerou-se: floriu o centro da mesa, colocou, para gelar, duas garrafas de vinho branco, qualidade superior, preparou salmão ao molho de maracujá, um dos pratos preferidos de Luiz Claudio, vestiu um longo, com uma fenda, ao lado, que permitia fuga de parte da coxa – ainda as tinha, torneadas – e, calmamente, sentou-se na poltrona, que trazia o parque para dentro da sala, inundada pela voz macia de Françoise Hardy. Coincidentemente, quando Luiz Claudio introduziu a chave na porta, ela cantava ‘’ne me quites pas.’’ Carinhosamente, quase com volúpia, ela o abraçou e beijou e falou de como o apartamento ficava absurdamente vazio, sem a presença dele. Luiz Claudio estranhou o inusitado comportamento da mulher, que nunca foi desses excessos de carinho. Sabia que ela e Rômulo já tinham conversado sobre a separação e, com certeza, aquela atenção toda, aquele carinho todo, fizesse parte de um plano para reconquistá-lo. Inútil. Passara maravilhosa semana com Simone, amaram-se, com intensidade que ele nem mesmo imaginava possuir. A decisão de ir morar com ela, gastar, com ela, os resquícios de sua juventude distante, era definitiva. Apenas uma mudança de planos: não falaria da separação, naquela noite. O cenário romântico, montado por Maria Clara, não o permitia. Não estava preparado para lágrimas, cobranças e lamentações. Deixaria a conversa para o dia seguinte, durante o café da manhã. O jantar, a luz de velas, o vinho bebido, relaxou Luiz Claudio da tensão que foi acumulando, até chegar em casa. Talvez por causa desse relaxamento, das taças de vinho, que Maria Clara insistia, ela mesma, encher, talvez os excessos da semana, passada com Simone, o certo é que Luiz Claudio sentia-se absurdamente cansado e com sono, apesar de ainda não ser meia-noite, ele que jamais dormia antes das duas da madrugada. Não sabia ele que, em cada garrafa de vinho – do qual ela bebeu apenas duas taças – Maria Clara dissolvera 20 comprimidos de ‘’dormonid’’, quantidade para abater até um gorila. Luiz Claudio, incapaz de se sustentar nas próprias pernas, foi apoiado em Maria Clara para o quarto, que o deitou, tirando-lhe toda a roupa. Esperou cerca de uma hora e, quando teve certeza que Luiz Claudio mergulhara em sono profundo, inicio seu plano de vingança: primeiro, amarrou-lhe as mãos, junto às extremidades da cabeceira da cama, imobilizando-as; depois, abriu a gaveta da cômoda, onde estava o facão, que comprara de vésperas e mandara amolar, inúmeras vezes; finalmente, com muita firmeza, segurou o membro de Luiz Claudio, que repousava inerte, e de um só golpe, decepou-o, bem na raiz e, assim que Luiz Claudio abriu a boca, para emitir um grito, nela o membro foi introduzido, metade, sanguinolento, pendendo do lado de fora. Depois, calmamente, foi até a sala, abriu a janela e, tal qual um pássaro, voou, em direção ao Lago do Ibirapuera. 

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