O edifício do Psiquiatra, que me foi indicado, situava-se na
Avenida Ibirapuera, defronte à Igreja, por onde passo, todos os domingos. Seu
consultório, no 18° andar, é bem decorado, apesar das flores de plástico, sobre
a mesinha de canto. As mesmas velhas revistas de sempre. Como sou cliente de
primeira vez, tenho que fazer ficha e aí surge o primeiro impasse: pergunta-me
a atendente:
- “quantos anos o Senhor tem?”
Respondo-lhe que tal informação é irrelevante e eu tenho por
princípio, não fornecê-la, nem a mim mesmo. Ela faz cara de espanto e o rapaz,
aguardando sua vez de ser atendido, finge que lê a revista. Espero quase uma
hora e, quando me preparo para ir embora, a porta do consultório se abre, o
rapaz sai, a atendente entra e, em seguida, sou chamado. O médico, mais ou
menos 50 anos, estatura mediana, conduz-me a uma poltrona, sentando-se a minha
frente. Com sorriso, pergunta-me:
- “você tem problema com idade?”
- “nenhuma, apenas considero invasão de
privacidade alguém com quem não tenho a mínima intimidade, indagar minha idade.
E, por falar em intimidade, como não nos conhecemos, prefiro que nos tratemos
por Senhor.”
- “Mas, para o médico, é importante saber a
idade do paciente.”
- “Estime,
doutor. Eu, por exemplo, acho que o Senhor está na faixa dos 50, Faça o
mesmo comigo e encerremos o assunto, até porque sua hora técnica é cara, para
ficarmos discutindo idade.”
- “Tudo bem, em que posso lhe ajudar?”
- “Preciso
de receita de lexotan, 6 mg, 03 caixas, por favor!”
- “Mas o Senhor só veio aqui pra isto? Não tem mais nada para
me falar? E se eu me recusar a lhe dar a receita?”
- “Vou embora, o Senhor devolve o cheque da
consulta e tudo bem!”
Eu já me levantava da poltrona, quando ele, apoiando a mão,
em meu ombro, pediu-me, gentilmente, para que eu me sentasse:
- “fique calmo, antes de lhe dar a receita,
vamos conversar um pouco. Por que e há quanto tempo o Senhor toma lexotan?”
- “Tomo para dormir, desde que me conheço como
gente, sob diferentes nomes.”
- “E nunca lhe fez mal?”
- “Há uns 30 anos atrás, um médico disse-me que,
a longo prazo, o uso iria prejudicar o
funcionamento de meus neurônios. Esses 30 anos se passaram e eu acho que meu
cérebro continua funcionando muito bem.”
- “O Senhor se considera uma pessoa feliz?”
- “Depende do conceito de felicidade. É alcançar
objetivos? Então sou! Estudei, formei-me na profissão que quis, casei com a
mulher, que quis, tive filhos, que nunca me deram preocupações, além das
triviais, então por este ângulo, considero-me feliz.”
- “Mas não sente falta de alguma coisa, que o
tornaria mais feliz?”
- “É claro, uma receita de lexotan de 6 mg.”
- Não, não falo de coisa banal, mas, sim, de
alguma coisa, presa no peito, digamos, uma frustração?”
- “Apenas de não ter 30 anos a menos e 30
milhões a mais”
- “E se o Senhor tivesse, o que faria?”
- “Não raciocínio sobre hipótese impossível, meu
caro Doutor, O tempo não volta e a única possibilidade de ter 30 milhões é
ganhar a mega sena acumulada.”
- “E se o Senhor ganhasse, o que faria?”
- “A esta
altura da vida? Nada que alterasse minha rotina, a não ser ajudar
algumas pessoas.”
- “Mas o Senhor podia viajar, conhecer lugares...”
- “o Senhor deve estar brincando Doutor! Já
viajei o suficiente, conheci os lugares que quis conhecer. Não tenho mais
paciência para aeroportos, hotéis, faz e
desfaz malas...”
- “mas o que lhe dá prazer, hoje em dia?”
- “Além de lexotan? Levar meus cachorros ao
parque, beber, aos sábados e domingos, ler um bom livro, já não é o bastante?”
- “E conversar com amigos, não lhe causa prazer?”
- Amigos, tenho-os nos dedos de uma só mão e os
mantenho à distância, que é o melhor forma de conservá-los.”
- “Numa primeira avaliação, acho que o Senhor
está em depressão. O que lhe parece?”
- “Concordo. Tenho várias formas de depressão: quando olho meu saldo
bancário, quando me faltam forças para segurar os cachorros, que avançam sobre
os gatos e, principalmente, quando constato que o lexotan está acabando. A
propósito, o Senhor vai me dar ou não a receita?”
- “Vou, desde que o Senhor assuma o compromisso
de voltar aqui. Precisamos conversar mais.”
- “É claro que volto. Considerando que cada
caixa de lexotan contem 20m comprimidos, o, que dá um total de 60, como tomo 2
por noite, daqui a 1 mês estou de volta.”
Ele levantou, despediu-se de mim, um leve sorriso,
dizendo-me: “da próxima vez, terei uma
conversa mais profunda com o Senhor”, ao que respondi: “da próxima vez, pode me chamar de você.”
E saí com o precioso formulário azul, nas mãos, com a leve impressão que o
psiquiatra não batia bem da cabeça.
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