Tenho a curiosidade incontida de deitar reparo nas pessoas
que andam pelas ruas e rotulá-las, pelo ritmo do passo, pela maneira de olhar
entorno, pelos gestos espontâneos. É claro que as avalio através de mim mesmo,
como me sinto, quando ando apressado ou devagar, se busco com o olhar alguma coisa
ou o significado dela, ou se apenas olho sem ver, mergulhado que estou em mim
mesmo. E lá estava o homem, parado na esquina, como a esperar alguém, ou o
semáforo lhe franquear a passagem. Fiquei a certa distância, apreciando seu não
movimento. Nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, qualquer coisa entre 60 ou
70, sobriamente vestido, sem elegância, mas bem composto: terno escuro, camisa
branca, sapato preto, limpo, mas graxa vencida, atestada pelo pouco brilho. O
semáforo abriu e fechou seguidas vezes e ele ali, estático, fora do tempo e dos
fazeres. Eu, que também seguia meio sem
rumo, aproximei-me, como se tivesse todas as soluções no bolso:- “posso ajudá-lo em alguma coisa, atravessar a
rua, por exemplo?” Ele, sem nada dizer, segurou-me firme pelo braço e me
conduziu, como se cego fosse, para ao bar da esquina, sentando-me na cadeira,
em mesa colocada na calçada. Durante minutos, na minha frente, olhou-me nos
olhos, com o constrangimento calando minha voz. Finalmente rompeu o silêncio: “que tem o senhor para me oferecer? Dinheiro,
não preciso, tenho-o acima de minhas necessidades. Conselhos, além de inúteis,
seria preciso que o senhor soubesse de meus problemas, das decisões a tomar e
já adianto que não as tenho. Por isso, para mim, o senhor é pessoa inútil. Será
que o simples fato de eu estar parado não é apenas porque eu queria ficar
parado? Se eu estivesse parado, imóvel, na praia, debaixo do guarda sol, o
senhor iria me oferecer ajuda? Que força ou poder o senhor julga ter para me
oferecer ajuda, aqui nesta avenida ou em praia qualquer, debaixo de guarda-sol
qualquer?” Sem resposta, aproveitei o silêncio que ressurgiu, chamei o
garçom e pedi uma cerveja que foi trazida com dois copos. Servi-me, mas não
ousei servi-lo. Qualquer reação, como atirar-me o líquido ao rosto, seria
possível. Ele continuava impassível, olhando-me ou melhor, estuprando-me os
olhos. Num gesto de extrema coragem mantive o olhar. Dois velhos, em silêncio,
olhos fixos um no outro, alheios ao barulho da rua, dos carros, buzinando raivosos, das pessoas indo e vindo. De repente ele deu
estrondosa gargalhada, encheu o copo e brindou como brindam íntimos amigos que
se encontram, sem hora marcada. Era outro homem, que voltava a falar: - “lembra-se da história de Diogenes, que percorreu
a cidade, carregando lanterna, à procura de um único homem honesto? Pois eu
estava parado, há mais de uma hora, naquela esquina, não à procura de homem
honesto, mas de alguém que, por cuidados ou, até mesmo, curiosidade, me
perguntasse o que estava fazendo ali, imóvel. Alguém que se incomodasse comigo.
Sabe, já não me recordo da última vez que recebi um abraço, desses, que nos
transmitem calor. Beijo, então, nem pensar e olha que não falo de beijo de
língua, que mistura nossas intimidades, mas simples “bitoca”, isto a que hoje
chamam “selinho”!. Senti-me fantasma, ali, imperceptivelmente parado, até que
surgiu você, dando-me a esperança, não desejada, que o ser humano talvez ainda
seja possível. Por isso me irritei com você, ofendendo-o até, e você se manteve
impassível, apenas olhando-me nos olhos, como se quisesse desvendar recôndito
segredo ou me julgando louco. Nem uma coisa, nem outra. Tal era seu espanto que
não pude deixar de gargalhar e peço desculpas por isto. E, para provar o quanto
lhe sou grato, vou lhe render a maior e mais definitiva homenagem”. O homem
se afastou dois passos e antes que eu, ou qualquer outra pessoa pudesse esboçar
reação, ele sacou a arma da cintura e, com sorriso nos lábios, estourou os
miolos, contaminando de sangue a cerveja, que descansava em meu copo.
sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017
Catequisar, em um tempo de modernidade
Ao encerrar a missa de domingo último, o sacerdote, que a
presidia, solicitou a colaboração de quem se julgasse capacitado, para a função
de catequista de crianças e adolescentes, a se prepararem para a primeira
comunhão e crisma. Fui para casa, tentado a oferecer meus serviços. Afinal, por
quase 10 anos, em outra Paróquia, fui Ministro Extraordinário da Eucaristia,
palestrante em “curso de noivos”, tendo elaborado apostila sobre o tema e
coordenei a equipe de liturgia. Além de tudo isto, sou leitor diário da Bíblia
e voraz devorador de livros sobre religião, de modo geral. Assim, em primeiro momento,
pretensiosamente, julguei-me capacitado para tão relevante tarefa que,
inclusive, serviria para “fortalecer
minha fé”. O domingo transcorreu com sua habitual mansidão, permitindo-me
melhor refletir sobre a decisão a tomar. Será que ainda sei conversar com
jovens? foi a primeira pergunta que me fiz. Lá pelos anos 60, eu também jovem,
(acreditem, já o fui!) lecionei, por cerca de 10 anos, Português e Literatura,
para alunos do 2º grau. Os tempos eram outros, os jovens tinham diferente
postura, em relação aos professores. Seria eu capaz de me comunicar com eles?.
Lembrei da crítica de meu filho, também advogado, cuja opinião solicitei, após júri realizado. Disse-me ele:-
“você foi bem, só que fala “velho”.
Exatamente por ter atingido a idade provecta, não sei falar “modernoso”. Ainda me preocupo com os
pronomes, em seus devidos lugares e com a harmonia que deve haver entre os
elementos da oração. E será que os conceitos teológicos ainda se mantêm?
Continua Deus tendo feito o céu, a terra, mares, rios, montanhas, seres vivos, tudo isto em 6 dias, descansando
no 7º? Está mantida a sentença que decretou o despejo de Adão e Eva do Paraíso?
E o Mar Vermelho continua aberto, permitindo a fuga dos judeus? Estão mantidos
os milagres de Jesus, desde a transformação da água em vinho, até a cura do
cego, do mudo, do paralítico? E quanto aos exorcismos, por ele realizados, à
luz do dia, diante de multidões embasbacadas? Não faz muito tempo, em uma
homilia, sacerdote, por quem tenho grande admiração, afirmou que céu e inferno,
como espaço físico não existem, constituído simples metáfora. Quase caí do
banco, até porque tal assertiva contraria várias passagens dos Evangelhos,
inclusive a “Profissão de Fé”, que
rezamos, exatamente após a homilia e onde está gravado que Jesus Cristo “subiu aos céus”. E no Evangelho de
Marcos (9,41-50), Cristo assevera que “se
sua mão te leva à queda, corta-a! É muito melhor entrares na vida tendo uma só das mãos do que,
tendo as duas, ires para o inferno, para o fogo, que nunca se apaga”.
Segundo meu parco entendimento, a clareza do texto não condiz com simples
metáfora. Ao final de tantas divagações, concluí ser inadequado para tão
responsável missão: além de “falar velho”,
como asseverou meu próprio filho, meus conhecimentos teológicos e bíblicos, que
os tinha como firmes, são, na verdade, vacilantes e estão desatualizados.
Assim, para felicidade de todos, desisti da empreitada, antes de promover
estragos.
quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017
Lição de vida
Podem dizer que é invasão de privacidade. Corro,
gostosamente, o risco de sofrer as reprimendas da “vítima”. É que segunda feira passada, 20, foi aniversário de
queridíssima amiga, destas que a gente tem por todas as vidas. Mulher
guerreira, comeu o pão que o diabo amassou, sofreu injustiças, desilusões,
tristezas e bota tristeza nisso. Nunca soube que se deixasse abater. Foi em
frente, às vezes, literalmente, só com a cara e a coragem, com que criou – e
muito bem – duas filhas. Tinha tudo para ser ressentida, amarga, mas, como boa
guerreira, venceu e apagou o substantivo “mágoa”
de seu dicionário. Eu a cumprimentei pela data e ela me respondeu com o texto,
que reproduzo abaixo. Lição de vida danada de boa! Para ler, refletir e tomar
como exemplo. Como egoísta que sou, omito a “fonte”.
ELUCUBRAÇÕES
NATALÍCIAS.
Ontem, passei o dia matutando: - ah! como queria que o tempo tivesse parado há alguns anos, quando estava no auge da maturidade, da capacidade intelectual, da forma física, etc. Enfim... Estava meio que frustrada com os estragos e as limitações que o passar dos anos vem me impondo. Pintou um enorme saudosismo da minha juventude, na verdade dos meus 27 anos, quando dei o grito de independência e assumi o total controle da minha vida. Acho que nasci de novo ali, naquele fevereiro. Muitos dos meus ídolos morreram aos 27 (Brian Jones, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Amy Winehouse, e tantos outros), enquanto Eu, aos 27, soltei amarras, venci medos, me divorciei e renasci. Encarei barras pesadésimas, passei incontáveis apertos, cresci profissionalmente, corri atrás dos meus sonhos, me vi mãe de duas incríveis mulheres, viajei por boa parte do mundo, aprofundei meus estudos, ganhei grana, conheci pessoas incríveis, amei muito, chorei e sofri pra cacete, fui o porto seguro dos meus pais, aprendi a beber vinho e a comer frutas e saladas, ouvi músicas de todos os ritmos, dancei, gargalhei e beijei na boca até não poder mais, aprendi a tocar um instrumento e a falar outro idioma, trabalhei com ética, conquistei amigos e respeito, conheci o medo, o desespero, o desânimo e a depressão, mas não me entreguei a eles (pelo menos, não permanentemente). Vivi com paixão e impulsividade e, também por isso, cometi uma montoeira de erros, fiz besteiras a três por dois, me expus mais do que o necessário e, consequentemente, levei as porradas que a vida "didaticamente" usa pra nos dar a real. Fui universitária de esquerda, me aburguesei seduzida pelo sucesso profissional e retomei a militância social depois de ver a ruína das teorias neoliberais. Nasci no catolicismo, me aventurei nos cultos afros e na filosofia oriental e, por fim, me desliguei de toda e qualquer "religião". Não sei ao certo o que aprendi com as topadas que dei, sei que doeram e deixaram marcas, mas não me impediram de tropeçar de novo aqui e ali. Fazer o quê?!? Sou irremediavelmente inquieta. Adoro mudanças (de casa, de trabalho, de cidade e quiça de país) e me jogo no "novo" sem rede de proteção. E assim tem sido por esse tanto de décadas. O peso dessa vivência varia com o dia, ora mais leve ora imensamente pesado. Em contrapartida, meu peso na balança do banheiro vem mantendo uma irritante linha ascendente ano após ano. Mas no frigir dos ovos, depois dessa divagação pelo tempo, concluo que se tivesse entrado pro time dos que não envelheceram, teria perdido a melhor parte do filme. Não teria sabido a bênção que é ter netos, nem que o amor pode acontecer em hora imprevista e de forma inusitada, derrubando cercas e preconceitos. Então, só de traquinagem vou continuar a brincar de viver. A festa ainda está bombando e os apressados, aqueles que saíram dela aos 27 e se mantêm jovens e lindos em nossas lembranças, não faziam idéia do que iam perder!!!
Ontem, passei o dia matutando: - ah! como queria que o tempo tivesse parado há alguns anos, quando estava no auge da maturidade, da capacidade intelectual, da forma física, etc. Enfim... Estava meio que frustrada com os estragos e as limitações que o passar dos anos vem me impondo. Pintou um enorme saudosismo da minha juventude, na verdade dos meus 27 anos, quando dei o grito de independência e assumi o total controle da minha vida. Acho que nasci de novo ali, naquele fevereiro. Muitos dos meus ídolos morreram aos 27 (Brian Jones, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Amy Winehouse, e tantos outros), enquanto Eu, aos 27, soltei amarras, venci medos, me divorciei e renasci. Encarei barras pesadésimas, passei incontáveis apertos, cresci profissionalmente, corri atrás dos meus sonhos, me vi mãe de duas incríveis mulheres, viajei por boa parte do mundo, aprofundei meus estudos, ganhei grana, conheci pessoas incríveis, amei muito, chorei e sofri pra cacete, fui o porto seguro dos meus pais, aprendi a beber vinho e a comer frutas e saladas, ouvi músicas de todos os ritmos, dancei, gargalhei e beijei na boca até não poder mais, aprendi a tocar um instrumento e a falar outro idioma, trabalhei com ética, conquistei amigos e respeito, conheci o medo, o desespero, o desânimo e a depressão, mas não me entreguei a eles (pelo menos, não permanentemente). Vivi com paixão e impulsividade e, também por isso, cometi uma montoeira de erros, fiz besteiras a três por dois, me expus mais do que o necessário e, consequentemente, levei as porradas que a vida "didaticamente" usa pra nos dar a real. Fui universitária de esquerda, me aburguesei seduzida pelo sucesso profissional e retomei a militância social depois de ver a ruína das teorias neoliberais. Nasci no catolicismo, me aventurei nos cultos afros e na filosofia oriental e, por fim, me desliguei de toda e qualquer "religião". Não sei ao certo o que aprendi com as topadas que dei, sei que doeram e deixaram marcas, mas não me impediram de tropeçar de novo aqui e ali. Fazer o quê?!? Sou irremediavelmente inquieta. Adoro mudanças (de casa, de trabalho, de cidade e quiça de país) e me jogo no "novo" sem rede de proteção. E assim tem sido por esse tanto de décadas. O peso dessa vivência varia com o dia, ora mais leve ora imensamente pesado. Em contrapartida, meu peso na balança do banheiro vem mantendo uma irritante linha ascendente ano após ano. Mas no frigir dos ovos, depois dessa divagação pelo tempo, concluo que se tivesse entrado pro time dos que não envelheceram, teria perdido a melhor parte do filme. Não teria sabido a bênção que é ter netos, nem que o amor pode acontecer em hora imprevista e de forma inusitada, derrubando cercas e preconceitos. Então, só de traquinagem vou continuar a brincar de viver. A festa ainda está bombando e os apressados, aqueles que saíram dela aos 27 e se mantêm jovens e lindos em nossas lembranças, não faziam idéia do que iam perder!!!
Ah! Mil vezes obrigada pela energia e carinho da mensagen que recebi ontem! Me fez um bem enorme! Valeu mesmo!!!
Bj
terça-feira, 21 de fevereiro de 2017
Porque já é carnaval
Não carece contar a história do carnaval ou a ficar, cheio de
nostalgia, relembrando carnavais passados, sejam os ingênuos da infância, sejam
os da adolescência, com cheiro de lança-perfume, que dava um instantâneo “barato”, seguido de mal-estar, mas que
não impedia que se repetisse a dose. Janio, que odiava a alegria, proibiu o
lança-perfume e o biquíni. Mas tudo isto é passado, que só importa em livro de
memória. Quero mesmo é falar da festa, da absoluta necessidade de permitirmos que
ela se impregne em nós, tirar-nos da realidade cotidiana, com seus problemas e
a angustia de não se conseguir solucioná-los. Afinal, são só 4 dias, para se
esvaziar a cabeça, cansar o corpo e soltar suas amarras. Não me falem em
estabelecer limites, o que não combina com a alegria. É claro que brigar,
ofender, não vale, porque isto não faz parte da alegria. Alegria é cantar,
pular, abraçar, beijar, exibir e contemplar coxas torneadas. Respeito é bom e “não” é, quase sempre “não” e só vale “forçar a barra”, quando o “não”
é vacilante, quando, por exemplo, se faz acompanhar de sorriso ou de olhar para
trás... Os blocos de rua resgataram o carnaval espontâneo, sem a chatice das
festas em clube, tudo caro e muita repressão. Também não nutro simpatia pelo “trios elétricos”,
onde se paga – e caro - para
acompanhá-los, protegido por cordas e seguranças, deixando o povão, espremido,
do lado de fora. Os desfiles das escolas de samba é “show”, mais voltado para turistas e o “mesmismo” dá a sensação que, quem viu uma, viu todas. Então a
alegria espontânea, verdadeira, fica por conta dos blocos de rua que ressurgem,
trazendo o esplendor do carnaval. Houve um tempo, aqui em São Paulo, a cidade
abandonada pelos que demandavam as praias ou o interior, que só se sabia do carnaval
pela televisão. Felizmente, com o tempo, surgiram manifestações espontâneas de
alegria, concentradas, principalmente na “Vila
Madalena” e, agora, são mais de 100 blocos, espalhados por toda São Paulo,
a comemorar a alegria desses 4 dias, em que nada poderá ser levado a sério,
senão a própria alegria. Quem for ao Rio de Janeiro – e eu pretendo estar nesta
– contará com quase 500 blocos de rua, franqueados ao público, desde o
tradicional “Cordão do Bola Preta”,
comemorando seu 99º aniversário, até o novato “Bunytos
de Corpo” que sai, meio de surpresa, no centro da cidade. É claro que meu
pique de sambar em bandas e cordões ficou lá atrás, com a “Banda do Leme”, de deliciosas recordações, mas impossível não
estar, pelo menos ao lado, da “Banda de Ipanema”, criada pela turma do “Pasquim”, tendo a frente Albino
Pinheiro, símbolo do carioca autêntico. Todavia, em qualquer lugar que se
esteja, até mesmo em casa, o importante é, a partir de sábado, deixar a
tristeza de lado, colocar as preocupações na gaveta, até porque, como dizia a
antiga marchinha, “a vida dura só um dia,
Luzia, e não se leva nada deste mundo!”.
segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017
A hora e a vez de Nara
Amigo muito querido envia-me correspondência eletrônica,
acusando-me de discriminador porque, em meus escritos, refiro-me a Rodolfo,
converso com ele, mas trato Nara, apenas como paisagem. Contesto o amigo e
explico: Nara acabou por completar 11 anos que,
convertidos para idade humana, corresponde a 77 anos. Em resumo: é velha
senhora, com seus conceitos sobre a vida, definitivamente estratificados. Não
tem má índole, mas despreza o ser humano, por considerá-lo hipócrita e egoísta.
Não guarda ódio, em seu coração, a não ser pelo homem, que faz a leitura do
consumo de luz e gás e pelo motoqueiro, que traz pizza ou comida chinesa.
Recebeu Rodolfo com carinho, ensinou-o a proteger a casa e transmitiu-lhe o
rancor pelas pessoas, acima referidas. Certa vez questionei-lhe a
indiossincrasia por aqueles trabalhadores. Respondeu-me, afastando a idéia de
preconceito:- “minha raiva não é do
motoqueiro em si, mas do barulho constante e ensurdecedor, que ele provoca.
Quanto ao leitor do consumo, quase certeza, que ele acresce na leitura, para
aumentar-lhe a conta. Na verdade, defendo seus interesses financeiros, porque o
vejo sair às 8 da manhã e chegar às 7 da noite, sempre com ar cansado e com
jeito de que as coisas não correram tão bem, como você gostaria”.
Expliquei-lhe que não era bem assim, que os fevereiros acumulados começavam a
pesar, além da conta, que nosso sistema judiciário era paquidérmico e que a
crise exigia que trabalhássemos mais para manter o padrão. Nara chegou a ser
cruel:- “quando cheguei aqui, há pouco
mais de 10, anos, vocês eram mais alegres, saíam, viajavam, davam festas. Agora
é constante mesmice, tirando Aline, que é sempre esfusiante, vocês parecem ter
desistido da vida”. Quis-lhe trazer à realidade:- “você também mudou muito, nestes anos Nara. Já não corre, anda e, quando
persegue os gatos, parece o bombeiro que corre com a água, mas não sabe onde é
o incêndio. Quando eu chego, à noite, enquanto Rodolfo pula no portão para
receber-me, você fica deitada. Não que você não goste de mim. É o cansaço, a
inação que os anos nos trazem. Os
velhos, como eu e você, somos mais contemplativos”. – “É, mas você e o Rodolfo ficam nesta conversa
chata e interminável sobre política, economia. Às Vezes, nem tenho vontade de
passear com vocês, vou apenas para fazer companhia. O Rodolfo, tudo bem, ainda
é jovem, tem a alma de sonhos povoada, mas você, burro velho, com estes livros
todos que leu, já devia ter percebido que não pode mudar nada, que é apenas
peça da engrenagem. Veja, por exemplo, você soltou até foguete, quando Dilma
Rousseff foi despejada. E daí, o que mudou em sua vida ou, até mesmo, na vida
dos meninos? O ideal pelo ideal não leva a nada. È por isso que me mantenho
alheia ao papo furado, entre você e o Rodolfo. Para mim – e deveria, também,
ser para você – a vida é feita de coisas simples: a água fresca, a ração farta
e a cama macia. Você vive reclamando que o verão está passando e você não aproveita.
Ora, tire uma semana, vai pro Rio ou Arraial D’Ajuda, ou você se acha tão
importante assim, que vai fazer falta? Como dizia minha mãe: “pretensão é água
benta...””
Recosto-me no sofá, abro a primeira cerveja e constato que,
mesmo sem o saber, Nara esteve com Fernando Pessoa, na “Tabacaria” – “O mundo é para
quem nasce para o conquistar e não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda
que tenha razão”. Sabida, esta Nara!
Assinar:
Postagens (Atom)