segunda-feira, 18 de julho de 2016

Por causa de livros e desenganos


Aquela era Maria Clara, intransigente em suas decisões, quaisquer que fossem. Com o tempo, Luiz Claudio compreendeu que discussões eram inúteis. A vontade dela sempre prevalecia, mesmo quando a obviedade dizia o contrario. Mas tudo começou mesmo por causa dos livros de Luiz Claudio que, segundo ela, eram inúteis e ocupavam espaço. – ‘’se você já os leu, por que não doá-los a terceiros?’’, repetia ela, quase como mantra. Difícil para ela entender que livros, adquiridos ao longo do tempo, não são meros objetos de decoração, mas a própria historia de sua vida e, afora os filhos, fôra o único tesouro que conseguira acumular. Mas, como sempre, ela venceu e os livros foram removidos para um corredor, fora da ordem, que ele dispusera, trabalho que lhe custara uma hérnia de disco. Depois veio a historia do quarto de hóspede, que ele utilizava como local para ver televisão e ler e que, de repente, ela resolvera transformar em mais um quarto de empregada. Foi aí que lhe caiu a ficha: Maria Clara estabelecera a estratégia de, espaço a espaço, colocá-lo para fora, privando-o de seus prazeres. De larga data, criticava seu gosto musical, irritava-se com seus cantores preferidos, principalmente Elis Regina, ícone de sua geração e a quem ela se referia de forma pejorativa. Nessas ocasiões, limitava-se ele a desligar o som e se esconder atrás do jornal. Talvez Maria Clara não o quisesse definitivamente fora, mas tão somente, privando-o de seus prazeres, deixar registrado que quem mandava era ela, apesar de ele jamais contestar isto. Finalmente, a solução chegou, quando um colega de trabalho comentou que queria se desfazer do pequeno apto – quarto e sala – que possuía, ali, perto da empresa. Com o bônus recebido, comprou o dito e para lá levou seus livros, ocupando todo o quarto de dormir, com novas estantes, pré-moldadas. O espaço pertenceria exclusivamente aos livros, nenhuma mesa, nenhuma cadeira. Era forma de homenageá-los e se redimir por não ter lutado por eles. Na exígua sala, instalou um sofá, que poderia servir de cama, um abajur de pé e um carrinho de chá, sobre o qual colocou algumas poucas garrafas. Na cozinha, apenas pequena geladeira e um micro-ondas. No local do fogão – peça que seria inútil, pois não sabia nem mesmo fritar um ovo – colocou uma minúscula mesinha de fórmica e uma banqueta. Detalhe: ninguém, principalmente Maria Clara, saberia daquele que seu esconderijo. Quando ela perguntou pelos livros, disse-lhe que, precisando de dinheiro, vendeu-os a um sebo. Ela acreditou ou fingiu acreditar, o que dava no mesmo. Num primeiro momento, passou a chegar tarde, em casa. Fazia escala no apartamento, assistia ao jornal, lia um pouco. Maria Clara reclamou, não porque quisesse sua presença, mas porque comprometia o horário do jantar. – ‘’Estamos com excesso de trabalho, por um tempo vai ser assim, melhor não me esperar, como qualquer coisa, na rua’’ justificou ele e, a partir de então, passou a armazenar comida congelada, no apartamento. Nos finais de semana, quando jogava seu time, arranjava uma desculpa e corria para o apartamento, onde, deitado no sofá, assistia ao jogo, na TV pregada à parede. Encantou-se com seu refugio e passou a criar viagens inexistentes, apenas para ter uma noite, só para si, ler, ouvir música, desfrutar daquela esfuziante solidão que, pela primeira vez, fazia com que ele se sentisse proprietário de si mesmo. Fora numa noite assim. Dissera que iria a Brasília e correu para seu esconderijo. Preparou generosa dose de uísque, que bebeu, vagarosamente, enquanto tomava banho. Depois, descongelou uma comida qualquer e, como se fosse uma despedida, passeou os olhos pelos livros, folheando alguns e tentando se lembrar de quando e onde os adquirira. Já passava das 10 da noite, quando a campainha tocou. Como não conhecia ninguém – evitava, até, cumprimentar os vizinhos – só poderia ser Adilson, o porteiro, de quem se tornara quase amigo. Displicentemente abriu a porta e imediatamente foi empurrado para dentro por um mulato enorme, arma na mão, exigindo dinheiro. Entregou-lhe as únicas notas, que tinha na carteira, duas de cinqüenta e uma de 20. O homem, furioso, investiu sobre a estante, derrubando livros, à procura de inexistente cofre. Foi neste momento que Luiz Claudio avançou sobre o assaltante. Desta vez, não permitiria que seus livros fossem violados. Levou dois tiros e caiu, vendo seu sangue e sua vida se misturarem aos volumes-esparramados, no chão.
Enfim, tivera uma morte gloriosa. 

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