Aquela era Maria Clara, intransigente em suas decisões,
quaisquer que fossem. Com o tempo, Luiz Claudio compreendeu que discussões eram
inúteis. A vontade dela sempre prevalecia, mesmo quando a obviedade dizia o
contrario. Mas tudo começou mesmo por causa dos livros de Luiz Claudio que,
segundo ela, eram inúteis e ocupavam espaço. – ‘’se você já os leu, por que não
doá-los a terceiros?’’, repetia ela, quase como mantra. Difícil para ela
entender que livros, adquiridos ao longo do tempo, não são meros objetos de
decoração, mas a própria historia de sua vida e, afora os filhos, fôra o único
tesouro que conseguira acumular. Mas, como sempre, ela venceu e os livros foram
removidos para um corredor, fora da ordem, que ele dispusera, trabalho que lhe
custara uma hérnia de disco. Depois veio a historia do quarto de hóspede, que
ele utilizava como local para ver televisão e ler e que, de repente, ela
resolvera transformar em mais um quarto de empregada. Foi aí que lhe caiu a
ficha: Maria Clara estabelecera a estratégia de, espaço a espaço, colocá-lo
para fora, privando-o de seus prazeres. De larga data, criticava seu gosto
musical, irritava-se com seus cantores preferidos, principalmente Elis Regina,
ícone de sua geração e a quem ela se referia de forma pejorativa. Nessas
ocasiões, limitava-se ele a desligar o som e se esconder atrás do jornal.
Talvez Maria Clara não o quisesse definitivamente fora, mas tão somente,
privando-o de seus prazeres, deixar registrado que quem mandava era ela, apesar
de ele jamais contestar isto. Finalmente, a solução chegou, quando um colega de
trabalho comentou que queria se desfazer do pequeno apto – quarto e sala – que
possuía, ali, perto da empresa. Com o bônus recebido, comprou o dito e para lá
levou seus livros, ocupando todo o quarto de dormir, com novas estantes,
pré-moldadas. O espaço pertenceria exclusivamente aos livros, nenhuma mesa,
nenhuma cadeira. Era forma de homenageá-los e se redimir por não ter lutado por
eles. Na exígua sala, instalou um sofá, que poderia servir de cama, um abajur
de pé e um carrinho de chá, sobre o qual colocou algumas poucas garrafas. Na
cozinha, apenas pequena geladeira e um micro-ondas. No local do fogão – peça
que seria inútil, pois não sabia nem mesmo fritar um ovo – colocou uma
minúscula mesinha de fórmica e uma banqueta. Detalhe: ninguém, principalmente
Maria Clara, saberia daquele que seu esconderijo. Quando ela perguntou pelos
livros, disse-lhe que, precisando de dinheiro, vendeu-os a um sebo. Ela
acreditou ou fingiu acreditar, o que dava no mesmo. Num primeiro momento,
passou a chegar tarde, em casa. Fazia escala no apartamento, assistia ao
jornal, lia um pouco. Maria Clara reclamou, não porque quisesse sua presença,
mas porque comprometia o horário do jantar. – ‘’Estamos com excesso de
trabalho, por um tempo vai ser assim, melhor não me esperar, como qualquer
coisa, na rua’’ justificou ele e, a partir de então, passou a armazenar comida
congelada, no apartamento. Nos finais de semana, quando jogava seu time,
arranjava uma desculpa e corria para o apartamento, onde, deitado no sofá,
assistia ao jogo, na TV pregada à parede. Encantou-se com seu refugio e passou
a criar viagens inexistentes, apenas para ter uma noite, só para si, ler, ouvir
música, desfrutar daquela esfuziante solidão que, pela primeira vez, fazia com
que ele se sentisse proprietário de si mesmo. Fora numa noite assim. Dissera
que iria a Brasília e correu para seu esconderijo. Preparou generosa dose de
uísque, que bebeu, vagarosamente, enquanto tomava banho. Depois, descongelou
uma comida qualquer e, como se fosse uma despedida, passeou os olhos pelos
livros, folheando alguns e tentando se lembrar de quando e onde os adquirira.
Já passava das 10 da noite, quando a campainha tocou. Como não conhecia ninguém
– evitava, até, cumprimentar os vizinhos – só poderia ser Adilson, o porteiro,
de quem se tornara quase amigo. Displicentemente abriu a porta e imediatamente
foi empurrado para dentro por um mulato enorme, arma na mão, exigindo dinheiro.
Entregou-lhe as únicas notas, que tinha na carteira, duas de cinqüenta e uma de
20. O homem, furioso, investiu sobre a estante, derrubando livros, à procura de
inexistente cofre. Foi neste momento que Luiz Claudio avançou sobre o
assaltante. Desta vez, não permitiria que seus livros fossem violados. Levou dois
tiros e caiu, vendo seu sangue e sua vida se misturarem aos
volumes-esparramados, no chão.
Enfim, tivera uma morte gloriosa.
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