terça-feira, 6 de outubro de 2015

O sonho realizado

Acácio vivia acabrunhado, quase depressivo. Chegara aos 70 com as mãos e os bolsos praticamente vazios e seu único patrimônio era o modesto apartamento das Perdizes e os carros, quase anciãos, dele e da esposa. Conseguira formar os filhos, mas, nesta casa, sabia que os frutos eram colhidos apenas por eles. Não podia reclamar: casara com uma mulher lindíssima, coxas longas e torneadas, com quem viveu intensamente, viajando pelo Brasil e pelo exterior, freqüentando os melhores restaurantes e casas noturnas do eixo São Paulo – Rio. Na cama, ela era um vulcão, sempre em erupção. Mas tudo isto ficou para trás, e o passado, como diz a canção, ‘’é uma roupa velha que não nos serve mais’’. O interesse da esposa por ele foi minguando e transformando-se em irremovível ressentimento, depois que uma pessoa da própria família, para se preservar das próprias lambanças, contara a ela que ele estivera envolvido com uma colega de trabalho. A esposa não aceitou suas explicações e resolveu transformar a vida dele num inferno. O tempo foi passando e ele, em silencio ensurdecedor, aprendeu a administrar aquele inferno: refugiava-se nos livros e no trabalho. Sempre se perguntou porque a mulher, se tinha convicção inabalável de sua canalhice, não o pusera para fora de casa. Talvez atormentá-lo, cotidianamente, imaginava ela ser vingança mais eficiente. Mas este era problema, que não mais o afligia. Aflição mesmo era constatar que chegara aos 70, tendo que trabalhar muito para manter medíocre padrão de vida. E, se morresse ou, pior, se ficasse gravemente doente, como sobreviveriam os dois? Preferia pular de um daqueles edifícios envidraçados da ‘’Faria Lima’’, a depender de filhos, cada qual enfrentando seus ‘’leões’’. Um dia, ou melhor, uma noite, Acácio sonhou com o pai. Sonho estranho: o pai apenas sorriu-lhe, com aquele sorriso contido (não se lembrava de vê-lo gargalhar) e lhe entregou um pedaço de papel, contendo alguns números e depois desapareceu, sem nada dizer. Esse sonho repetiu-se várias vezes, sempre do mesmo jeito, sempre os mesmos números, que Acácio até decorara. Qual o significado daquele sonho, se é que sonho tinha qualquer significado? Por que o pai, de quem ele raramente lembrava, aparecia-lhe com tanta freqüência? E aqueles cabalísticos números, o que indicariam? Os dias se passaram, o pai desapareceu dos sonhos e Acácio já o tinha esquecido, quando, um sábado, leu no jornal que a mega-sena estava acumulada em quase 60 milhões e a noticia, para aguçar o apetite, dizia o que se podia fazer com aquela dinheirama toda. Tudo conspirava para que Acácio jogasse, pela primeira vez: havia uma lotérica, no supermercado, onde, aos sábados, ele fazia as compras semanais da casa. Anotou, na cartela, os números, ditados por seu pai e guardou o comprovante, na carteira. Achou-se meio ridículo, com tudo aquilo, por isso preferiu guardar silencio. Os dias se passaram e ele, enfrentando uma guerra em casa e outra, na rua, esqueceu-se do jogo, que adormecia, em sua carteira. Passara quase um mês, quando, uma noite, como de habito, assistia ao ‘’Jornal da Bandeirantes’’, quando o Boechat deu a noticia: ‘’ainda não apareceu o ganhador do teste nº tal da mega-sena que pagou 62 milhões de reais.’’ Só então Acácio lembrou-se de seu jogo. No outro dia, antes de ir para o trabalho, passou por uma lotérica e, de posse do resultado, foi conferi-lo, em um café, ao lado. Suas mãos tremeram, seus olhos ficaram embaçados e a voz calou-se na garganta. Ganhara! Era ele o proprietário daquela fortuna. O que fazer? Tudo o que pretendia era conquistar a liberdade. Libertar-se daquela vida medíocre, feita de mesmismo. Libertar-se daquele casamento, chamuscado por um ressentimento que, muitas vezes, transformava-se em ódio, aquele ódio que faísca dos olhos, que grita, sem abrir a boca. O que fazer com 60 milhões, quando a vida se transforma em gosto amargo de fracasso? Viajar, para onde e com quem? Com a tranqüilidade de quem tem certeza do que faz, Acácio retirou o premio, em cheque administrativo, endossou-o, depositou na conta se suas esposa, colocou o recibo do deposito em envelope fechado, que deixou sobre o travesseiro dela e se dirigiu àquela praia, de cuja pedra gostava de apreciar o mar. Quando o sol começou a mergulhar nas águas, ele pulou da pedra e nadou em direção ao poente. Apenas ele, o mar e o sol findante. 

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