sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

O dia que não terminou

Oito horas da manhã daquela segunda feira de agosto e Luiz Claudio se preparava para descer os 10 lances de escada, que o levaria à garagem. O gerador do prédio – cujo cheiro nauseabundo, pela falta de água, impregnava todos os ambientes – só permitia a iluminação das áreas comuns. Luiz Claudio estava exausto, porque o racionamento de água, só liberava o escasso produto uma vez por semana, no seu caso, aos domingos, entre 01 e 04 horas da madrugada, lapso de tempo utilizado por ele para tomar banho, lavar a louça acumulada e suas peças menores, cuecas e meias e ainda estocar água em latões, enfileirados na área de serviço. Seu edifício, com 24 apartamentos, àquela hora da manhã, estava mergulhado em fúnebre silencio. Muitos moradores já o tinham abandonado, mudando para outras cidades, principalmente do sul do País, onde, se parca era a energia elétrica, pelo menos tinha água. Desde o mês passado, quando a situação ficou definitivamente caótica, a cidade foi, progressivamente, transformando-se em “cidade fantasma”. As aulas estavam suspensas, por prazo indeterminado; os hospitais só atendiam casos de emergência; os bancos reduziram suas atividades para 2 horas, em dias alternados, o mesmo acontecendo com as repartições públicas. A grande maioria das indústrias dera férias coletivas a seus empregados e os Shoppings Centers só funcionavam aos sábados, no período da tarde, assim mesmo com os banheiros interditados. As ruas estavam desertas e o percurso entre seu prédio, situado na Vila Mariana e o Hospital, onde trabalhava, na Pompéia, que, em dias normais, não demorava menos de uma hora, agora podia ser feito em, no máximo, 10 minutos. Estimava-se que mais de 03 milhões de pessoas abandonaram a cidade, nos últimos 02 meses e o êxodo diário continuava, cada vez mais acentuado. Das calçadas exalava forte cheiro de urina e alguns, sem maiores escrúpulos, buscavam os canteiros mais isolados para fazerem suas necessidades. Luiz Claudio chegara ao hospital municipal, onde trabalhava e a recepção prolongava-se em filas, pela rua. Impossível atender mais do que 5% de todos aqueles infelizes. Mal passara pela portaria, a enfermeira chefe, aborda-o, aflita: - “Dr. Luiz Claudio, nosso gerador quebrou, a Secretaria alega que só pode mandar consertar em 03 dias, não tem outro para repor, a água só dá para mais uma hora, a SABESP não possui caminhões pipa, não temos leitos disponíveis, estamos com 10 cirurgias agendadas, que já deveriam ter sido iniciadas e não há uma única vaga nos outros hospitais públicos da cidade. O que vamos fazer?”.  Luiz Claudio olhou para a enfermeira chefe, com profundo tédio. Que esperava ela que ele fizesse? Que, imitando Moisés, batesse com seu cajado (e ele nunca vira um) na pedra e fizesse jorrar água? Que, como Deus, no primeiro dia, apenas dissesse “faça-se a luz” e todas as lâmpadas se acendessem? Ele, Luiz Claudio, estava cansado de tudo isso. Das vidas que se perdiam, todos os dias, por leniência do poder público; da frustração profissional de saber o que fazer e não dispor de meios para fazê-lo. Lembrou-se de seu colega e amigo, Henrique, um dos mais renomados cirurgiões plásticos do país, inclusive com consultório no exterior: - “Luiz Claudio, saia dessa vida maluca de trabalhar em hospital público, lugar de gente pobre. Entenda que negócio com pobre sempre será um pobre negócio.” Mas ali estava Luiz Claudio, olhando, sem ver, para a enfermeira chefe, que aguardava uma resposta, impossível de ser dada. Sem nada dizer, Luiz Claudio subiu, pelas escadas, até o 5º andar e se dirigiu a sua sala. Abriu a janela, contemplou o céu, irritantemente azul e limpo. Subiu no parapeito da janela, beijou o crucifixo que trazia, permanentemente, pendurado no peito e saltou... iria buscar de Deus as respostas às perguntas da enfermeira chefe.

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