sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Uma lição de cachorro



Chego em casa e me deparo com cena inusitada: Clovis, o mal querido vira-lata, que late, sem parar, sem causa determinada, escapou para a frente da casa e está sendo devorado por Nara, que o odeia. Subitamente, Rodolfo, que, em circunstâncias normais, faria parte do “banquete”, imobiliza Nara, dando tempo a Clovis a retornar ao quintal dos fundos. Nara, tão surpresa quanto eu, permanece estática, tentando compreender Rodolfo. Não resisto, e pergunto a Rodolfo, porque ele, a quem Clóvis sempre transmitiu igual repulsa, resolveu poupá-lo.
Sabe, chefe (ele adquiriu o hábito de chamar-me de “chefe”, apesar de meus  protestos), a gente vai amadurecendo e melhor entendendo e aceitando as pessoas. A Nara, tudo bem, chegou à velhice e os velhos, pelas frustrações acumuladas, são ranzinzas, preconceituosos, sem piedade, até. Não se conformam que logo, logo vão morrer, deixando tanta coisa maravilhosa para os mais jovens. Todavia, eu, chegando aos 05 anos, tenho a obrigação de ser complacente. Tudo bem, o Clovis é chato, feio e espaçoso. Não gosto dele, mas não tenho o direito de espancá-lo. Comparo nossa história de vida: você foi me buscar, eu ainda bebê, vim no seu colo, coberto de beijos, que continuaram, com Renata carregando-me nos braços. Nos primeiros tempos, dormia com você, a ouvir estórias cheias de amor. Quando fui transferido para a frente da casa, Nara, que reinava sozinha, acolheu-me, com amor maternal. Agora, veja a história do Clovis: veio de longínqua periferia, de uma família de 05 irmãos, escapou de ser atirado à fogueira por sua empregada, que o trouxe para cá, onde chegou sujo, pulguento, esquelético e ainda traumatizado por ter assistido a seus irmãos serem queimados vivos. Vocês o trataram, encheram-no de carinho, enfim, deram-lhe um lar, na melhor acepção do termo. Agora, ele sente ter os mesmos direitos, que eu e a Nara temos e quer ter o privilégio da atenção de todos, por isso late, arruma confusão com Olavo, com Romeu. Ciúme puro, de quem nasceu rejeitado, pior, condenado à morte. Aliás, pelo que observo, lendo, vendo televisão, na sociedade humana, as coisas funcionam da mesma maneira. Só não queimam as pessoas, vivas, (aliás, até queimam), mas as desiguais oportunidades geram a marginalidade, o abandono, os moradores de rua, os habitantes da cracolândia. Muito raramente, um “Clovis” é salvo e tem a felicidade de ter uma vida digna, pois a maioria acaba mesmo é integrando, diretamente ou indiretamente, as organizações criminosas que, cumprindo a lacuna deixada pelo Estado, suprem-lhes as necessidades básicas. Li, outro dia, em jornal que você deixou no sofá, que 80% da população carcerária brasileira é formada por negros, moradores de favela ou periferia. Por certo, muitos lá não estariam, se tivessem tido alguma oportunidade que, a meu juízo canino, é a essência da liberdade. Desculpe dizer, mas vocês, privilegiados, voltados para seus egoísmos, não estão nem aí e acham que fizeram sua parte, porque deram uma roupa velha ou uns trocados para um infeliz. Falta respeito ao próximo, entender suas limitações, procurar conhecer sua história. Foi por isso que interferi, impedindo que Nara batesse no Clovis. Era o mínimo que eu podia fazer. Você vai lá no fundo, faz um chamego no Romeu, leva o Olavo no salão, mas não dá a mínima para o Clovis. Como você acha que ele se sente? Sei não, chefe, mas não seria bom dar um pouco mais de atenção a ele?
Abaixei a cabeça, reconheci meu erro, peguei uma almôndega, que estava sobre o fogão e chamei Clovis a um canto. Ele me olhou, com espanto, comeu e lambeu minha mão.

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