Chego em casa e me deparo com cena inusitada: Clovis, o mal
querido vira-lata, que late, sem parar, sem causa determinada, escapou para a
frente da casa e está sendo devorado por Nara, que o odeia. Subitamente,
Rodolfo, que, em circunstâncias normais, faria parte do “banquete”, imobiliza Nara, dando tempo a Clovis a retornar ao
quintal dos fundos. Nara, tão surpresa quanto eu, permanece estática, tentando
compreender Rodolfo. Não resisto, e pergunto a Rodolfo, porque ele, a quem
Clóvis sempre transmitiu igual repulsa, resolveu poupá-lo.
“Sabe, chefe (ele
adquiriu o hábito de chamar-me de “chefe”,
apesar de meus protestos), a gente vai amadurecendo e melhor entendendo
e aceitando as pessoas. A Nara, tudo bem, chegou à velhice e os velhos, pelas
frustrações acumuladas, são ranzinzas, preconceituosos, sem piedade, até. Não se
conformam que logo, logo vão morrer, deixando tanta coisa maravilhosa para os
mais jovens. Todavia, eu, chegando aos 05 anos, tenho a obrigação de ser
complacente. Tudo bem, o Clovis é chato, feio e espaçoso. Não gosto dele, mas
não tenho o direito de espancá-lo. Comparo nossa história de vida: você foi me
buscar, eu ainda bebê, vim no seu colo, coberto de beijos, que continuaram, com
Renata carregando-me nos braços. Nos primeiros tempos, dormia com você, a ouvir
estórias cheias de amor. Quando fui transferido para a frente da casa, Nara,
que reinava sozinha, acolheu-me, com amor maternal. Agora, veja a história do
Clovis: veio de longínqua periferia, de uma família de 05 irmãos, escapou de
ser atirado à fogueira por sua empregada, que o trouxe para cá, onde chegou
sujo, pulguento, esquelético e ainda traumatizado por ter assistido a seus
irmãos serem queimados vivos. Vocês o trataram, encheram-no de carinho, enfim,
deram-lhe um lar, na melhor acepção do termo. Agora, ele sente ter os mesmos
direitos, que eu e a Nara temos e quer ter o privilégio da atenção de todos,
por isso late, arruma confusão com Olavo, com Romeu. Ciúme puro, de quem nasceu
rejeitado, pior, condenado à morte. Aliás, pelo que observo, lendo, vendo
televisão, na sociedade humana, as coisas funcionam da mesma maneira. Só não
queimam as pessoas, vivas, (aliás, até queimam), mas as desiguais oportunidades
geram a marginalidade, o abandono, os moradores de rua, os habitantes da
cracolândia. Muito raramente, um “Clovis” é salvo e tem a felicidade de ter uma
vida digna, pois a maioria acaba mesmo é integrando, diretamente ou
indiretamente, as organizações criminosas que, cumprindo a lacuna deixada pelo
Estado, suprem-lhes as necessidades básicas. Li, outro dia, em jornal que você
deixou no sofá, que 80% da população carcerária brasileira é formada por
negros, moradores de favela ou periferia. Por certo, muitos lá não estariam, se
tivessem tido alguma oportunidade que, a meu juízo canino, é a essência da
liberdade. Desculpe dizer, mas vocês, privilegiados, voltados para seus
egoísmos, não estão nem aí e acham que fizeram sua parte, porque deram uma
roupa velha ou uns trocados para um infeliz. Falta respeito ao próximo,
entender suas limitações, procurar conhecer sua história. Foi por isso que
interferi, impedindo que Nara batesse no Clovis. Era o mínimo que eu podia
fazer. Você vai lá no fundo, faz um chamego no Romeu, leva o Olavo no salão,
mas não dá a mínima para o Clovis. Como você acha que ele se sente? Sei não,
chefe, mas não seria bom dar um pouco mais de atenção a ele?
Abaixei a cabeça, reconheci meu erro, peguei uma almôndega,
que estava sobre o fogão e chamei Clovis a um canto. Ele me olhou, com espanto,
comeu e lambeu minha mão.
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