Já é velho e batido dizer que a velhice enterra a memória
recente e faz aflorar a remota. O que almocei ontem, se que é que almocei? Pode ter sido aquele contra-filé
acebolado, do restaurante ao lado do posto, ou o rodízio de carne e saladas, lá
da Paulista, mas isto não importa.
Penso, até, em mandar fazer duas correntes, com meu telefone e endereço,
uma para mim, outra para Rodolfo. Vai que saiamos a passeio e eu não encontre o
caminho de volta? Ele é jovem, mas comete a tolice de confiar em mim, além do
mais, quando caminhamos pelo parque e adjacências, não para de falar, não
prestando atenção no trajeto percorrido. Mas, deixa pra lá, porque quero falar
mesmo é da memória remota, fatos esquecidos em idades esquecidas e que, como em
sonho, de repente, afloram. Já contei que, na distante e querida cidade, de
onde vim, na época de eu menino, havia dois cinemas: o "Cine Vitória”, que passava os filmes
tradicionais e com frequência mais
selecionada e o “Cine Império” que,
apesar de nome pomposo, era conhecido como “Cine
Poeira” e frequentado “pelo povo, em
geral”. As “poltronas” – se é que
se podia chamá-las assim - eram de
madeira, o piso era de cimento de péssima qualidade e a agitação do público, ao
entrar e sair, fazia levantar pó, daí o
codinome da “casa de espetáculo”. Aos
sábados, exibia, em sessão contínua, dois filmes de “bang bang”. Fui testemunha da morte de milhões de perversos índios,
abatidos por mocinhos, cujos revólveres davam centenas de tiros, sem serem
recarregados. Isto não importava, vez
que, para alegria geral, ao final, o cacique era obrigado a se render, os
bandidos eram presos e o valente e destemido “cowboy”, que salvara a “mocinha”,
com ela se casava. Eu estava lá, firme, todos os sábados, sentado na primeira
fila, ainda usando calças curtas. Agora vem a história: a meu lado, quase
sempre, sentava-se um senhor – mais ou menos 30 anos – modestíssimamente
vestido e que não se contentava em “torcer”
pelo “mocinho” e sua amada.
Participava, ativamente, da trama, dialogando com os artistas, prevenindo-os de
ataques pelas costas, indicando-lhes a melhor estratégia, para derrotar o
inimigo. Comportava-se como general, no comando de sua tropa e, encerrados os
filmes e acesas as luzes, ele se deixava, sentado, exausto, sorriso nos lábios,
tendo absoluta certeza que, sem ele, o desenlace feliz seria impossível. Sua
certeza transferiu-se para mim. Tanto que, quando eu lá chegava, procurava-o,
até com ansiedade, pois sabia que, com a presença dele, a vitória de meus
heróis estava garantida.
Se, à época, tivesse eu a previsibilidade de tantos perigos,
a enfrentar, vida afora, tê-lo-ia trazido comigo, como irmão xipófago, para me
livrar das adversidades, tantos índios e
bandidos (eu mesmo, bandido de mim), a atormentarem meu viver.
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