sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Rápida viagem ao passado remoto



Já é velho e batido dizer que a velhice enterra a memória recente e faz aflorar a remota. O que almocei ontem, se que é que  almocei? Pode ter sido aquele contra-filé acebolado, do restaurante ao lado do posto, ou o rodízio de carne e saladas, lá da Paulista, mas isto não importa.  Penso, até, em mandar fazer duas correntes, com meu telefone e endereço, uma para mim, outra para Rodolfo. Vai que saiamos a passeio e eu não encontre o caminho de volta? Ele é jovem, mas comete a tolice de confiar em mim, além do mais, quando caminhamos pelo parque e adjacências, não para de falar, não prestando atenção no trajeto percorrido. Mas, deixa pra lá, porque quero falar mesmo é da memória remota, fatos esquecidos em idades esquecidas e que, como em sonho, de repente, afloram. Já contei que, na distante e querida cidade, de onde vim, na época de eu menino, havia dois cinemas: o "Cine Vitória”, que passava os filmes tradicionais e com frequência  mais selecionada e o “Cine Império” que, apesar de nome pomposo, era conhecido como “Cine Poeira” e frequentado “pelo povo, em geral”. As “poltronas” – se é que se podia chamá-las assim -  eram de madeira, o piso era de cimento de péssima qualidade e a agitação do público, ao entrar e sair, fazia levantar pó, daí  o codinome da “casa de espetáculo”. Aos sábados, exibia, em sessão contínua, dois filmes de “bang bang”. Fui testemunha da morte de milhões de perversos índios, abatidos por mocinhos, cujos revólveres davam centenas de tiros, sem serem recarregados. Isto não importava,  vez que, para alegria geral, ao final, o cacique era obrigado a se render, os bandidos eram presos e o valente e destemido “cowboy”, que salvara a “mocinha”, com ela se casava. Eu estava lá, firme, todos os sábados, sentado na primeira fila, ainda usando calças curtas. Agora vem a história: a meu lado, quase sempre, sentava-se um senhor – mais ou menos 30 anos – modestíssimamente vestido e que não se contentava em “torcer” pelo “mocinho” e sua amada. Participava, ativamente, da trama, dialogando com os artistas, prevenindo-os de ataques pelas costas, indicando-lhes a melhor estratégia, para derrotar o inimigo. Comportava-se como general, no comando de sua tropa e, encerrados os filmes e acesas as luzes, ele se deixava, sentado, exausto, sorriso nos lábios, tendo absoluta certeza que, sem ele, o desenlace feliz seria impossível. Sua certeza transferiu-se para mim. Tanto que, quando eu lá chegava, procurava-o, até com ansiedade, pois sabia que, com a presença dele, a vitória de meus heróis estava garantida.
Se, à época, tivesse eu a previsibilidade de tantos perigos, a enfrentar, vida afora, tê-lo-ia trazido comigo, como irmão xipófago, para me livrar das  adversidades, tantos índios e bandidos (eu mesmo, bandido de mim), a atormentarem meu viver.

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