Aconteceu já lá vão 10 anos ou mais. Conheci-o – chamava-se
Lucas -, através de ancestral cliente, que se derretia de admiração por ele. E
não era para menos: Sua aparência, educado, voz de locutor de rádio, excelente
contador de casos. Dizia ter 50 anos, dos quais os últimos 20 passou viajando
mundo afora. Esquiou nos Alpes, hospedou-se com tribos africanas, percorreu
deserto com beduínos e até cortou lenha no Alaska. Das capitais europeias e norte-americanas
conhecia até as vielas e becos. Sabia – e recomendava – onde se podia comer a
melhor “pasta”, da Itália, beber o
melhor vinho, na França e degustar o mais fino uísque da Escócia. Assistira a
corridas de touros em Salvaterra e saiu, às pressas do Chile, quando Allende
foi apeado do poder. Estraçalhara corações em todos os continentes, mas foi na
Nova Zelândia, com exuberante morena de olhos verdes, que deixou seu coração.
Para ela escreveu vários poemas, que se recusou a publicar, malgrado a
insistência de editor inglês, seu amigo de incontáveis copos. Depois dela, “never more”, porque, segundo ele “sua alma chorara tanto que de pranto ficara
vaga”.Carregava uma vergonha, adubada com culpa: do Brasil conhecia não
mais que 100 cidades e, sussurrando, como quem confessa crime inafiançável,
contou nunca ter estado em Roraima e Macapá, cujas capitais nem mesmo sabia o
nome. Vivia de gordas comissões, recebidas de operações financeiras
internacionais, que intermediava. Tinha residência, em luxuoso condomínio
fechado, situado lá pras bandas de Santo Amaro, onde, inclusive, mantinha seu
escritório e um ponto de apoio logístico, em Londres, na “Jermyn Street”. Havia, todavia, duas coisas, que me incomodavam em
tão ilustre pessoa: usava sempre a mesma roupa (calça cinza e blazer azul
marinho) e, em nossos aperitivos e almoços, nem mesmo esboçava a intenção de
pagar a conta.
A secretaria avisa-me que o mesmo Lucas está ao telefone e
precisa falar, com urgência. Pede-me para recebê-lo, com o que concordo, apesar
de ser sexta-feira, dia que reservo exclusivamente, para tarefas internas. Ele
chega por volta das 4 da tarde. O mesmo blazer e a mesma calça, todavia
deixara, não sei onde, a alegria e a aparência de quem procurou e achou o que queria. Depois de
alguns minutos, jogando conversa fora, faz-se eloquente silêncio e ele, voz
baixa e olhos umedecidos, começa dizendo
que gostou de mim e quer que nossa conversa, em feitio de confissão, não saia
da sala. Ouço-o, em silêncio, sem assumir compromisso de confidencialidade, o
que reservo apenas aos clientes. Entre
frases entrecortadas de soluços, confessou que era um “duro”, nunca saíra nem de São Paulo e
morava em quarto, de casa de cômodos, travessa da Celso Garcia, no Brás. Vivia
de uma pensão, deixada por seu pai e, com o quase nada que lhe sobrava,
comprava “guias de turismo”, de onde
tirava as cidades e ruas, por ele citadas em suas conversas. Não mais suportava
viver, no mundo de fantasia, que criara, por isso, resolveu “abrir o jogo” comigo. Iria dar uma
desculpa, longa viagem e sumiria. Pediu-me perdão e módico empréstimo, na
verdade, doação.
Na segunda-feira encontro
o tal cliente, para o habitual uísque de final de dia. Com indisfarçável
inveja, informa-me: “sabe o nosso amigo
Lucas? O felizardo recebeu e-mail da antiga paixão neo-zelândesa. Não sabe como
ela o descobriu. O certo é que ele largou tudo e foi, ontem, encontrar-se com
sua amada, em Paris. Disse-me que, provavelmente, não voltará. Esse sabe levar
a vida, não acha?” Apenas sorri e, em silêncio, desejei-lhe boa viagem.
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