Mergulho para Liberdade
Decididamente, aquele não fora um bom dia. Enfrentara
transito infernal até o escritório, discutira com a secretaria, por causa do
café frio, o cliente das 09 chegou quase 10, tumultuando a agenda (odiava
esperar e era rigorosamente britânico em seus horários). Como chovia, preferiu
almoçar por ali mesmo e a carne veio quase crua. Decididamente aquele não seria
um bom dia. Finalmente, saiu o julgamento do processo, cujo cliente telefonava
todos os dias. Perdeu! Sabia que não tinha muitas possibilidades, mas aquele
homem, idade avançada, via no resultado sua última e única alternativa para sair
daquela vida miserável, o minúsculo apartamento de subúrbio, comida racionada,
o mesmo terno lustroso, paletó desfiado na ponta. Teria que enfrentá-lo: “perdemos, esqueça seus sonhos, mas ainda
podemos recorrer e, quem sabe?” Sabia que o recurso, além de demorado,
seria esforço inútil. O homem de terno lustroso, por certo, abaixaria a cabeça,
em sinal de desânimo e se despediria dele com as mãos úmidas, o que o faria
correr ao banheiro para lavar as suas. As luzes da orla já estavam acesas,
quando encostou seu carro naquele bar, no final do Leblon. Fizera-o quase
instintivamente. Fora ali que conhecera Maria Clara. Alta, loura, queimada de
praia, vestia uma saia que libertava coxas torneadas. Viveram dois anos de
tórrida paixão, até que um dia, chuvoso como o de hoje, encontrou-a malas
prontas. Poucas palavras: “já demos o que
tínhamos que dar. Adeus, a gente se vê por aí.” Ele se lembra de ter se
jogado no sofá, atônito. É certo que o relacionamento tinha esmaecido, o vulcão
já não vomitava larvas incandescentes. Já não saíam tanto, já não transavam
tanto, mas... A verdade é que sentia falta de Maria Clara, do perfume, que
inundava o apartamento e até de suas calcinhas, penduradas no Box do banheiro,
motivo de tantas discussões. E, agora, quase um ano depois, sentado naquele
mesmo bar, bebendo o uísque “sauer”
de sempre, pensava em Maria Clara, vontade de tê-la, ali, a seu lado, brincar
com seus cabelos, que teimavam em cobrir-lhe o rosto. Sentiu-se absurdamente
cansado. Não cansaço físico, mas cansaço daquela vida inútil, cotidiano inútil.
Chegava aos 50, sem família, sem perspectiva de levar outra vida, senão aquela,
medíocre, todos os dias mediocremente iguais. Pagou a conta, sem qualquer
cordialidade com o garçom de tantos anos. No elevador do prédio, uma senhora
gorda, resfolegando, tentou puxar conversa, reclamando do transito. Como ele
respondeu um raquítico “é mesmo”, ela
desistiu. Felizmente chegou seu andar, o oitavo. Abriu a porta. Tudo
absurdamente igual, como ele deixara: o livro aberto, ao lado da poltrona, a
xícara de café, suja, pão espiando a cozinha. Sinal que a faxineira não
aparecera. Era o que faltava para completar. Vagarosamente, como quem sabe o
que fazer, ele caminhou até a varanda, que dava para a avenida, subiu no
parapeito e mergulhou. Ainda teve tempo de sentir gotas de chuva molhar-lhe os
cabelos.
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