quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Mergulho para Liberdade
Decididamente, aquele não fora um bom dia. Enfrentara transito infernal até o escritório, discutira com a secretaria, por causa do café frio, o cliente das 09 chegou quase 10, tumultuando a agenda (odiava esperar e era rigorosamente britânico em seus horários). Como chovia, preferiu almoçar por ali mesmo e a carne veio quase crua. Decididamente aquele não seria um bom dia. Finalmente, saiu o julgamento do processo, cujo cliente telefonava todos os dias. Perdeu! Sabia que não tinha muitas possibilidades, mas aquele homem, idade avançada, via no resultado sua última e única alternativa para sair daquela vida miserável, o minúsculo apartamento de subúrbio, comida racionada, o mesmo terno lustroso, paletó desfiado na ponta. Teria que enfrentá-lo: “perdemos, esqueça seus sonhos, mas ainda podemos recorrer e, quem sabe?” Sabia que o recurso, além de demorado, seria esforço inútil. O homem de terno lustroso, por certo, abaixaria a cabeça, em sinal de desânimo e se despediria dele com as mãos úmidas, o que o faria correr ao banheiro para lavar as suas. As luzes da orla já estavam acesas, quando encostou seu carro naquele bar, no final do Leblon. Fizera-o quase instintivamente. Fora ali que conhecera Maria Clara. Alta, loura, queimada de praia, vestia uma saia que libertava coxas torneadas. Viveram dois anos de tórrida paixão, até que um dia, chuvoso como o de hoje, encontrou-a malas prontas. Poucas palavras: “já demos o que tínhamos que dar. Adeus, a gente se vê por aí.” Ele se lembra de ter se jogado no sofá, atônito. É certo que o relacionamento tinha esmaecido, o vulcão já não vomitava larvas incandescentes. Já não saíam tanto, já não transavam tanto, mas... A verdade é que sentia falta de Maria Clara, do perfume, que inundava o apartamento e até de suas calcinhas, penduradas no Box do banheiro, motivo de tantas discussões. E, agora, quase um ano depois, sentado naquele mesmo bar, bebendo o uísque “sauer” de sempre, pensava em Maria Clara, vontade de tê-la, ali, a seu lado, brincar com seus cabelos, que teimavam em cobrir-lhe o rosto. Sentiu-se absurdamente cansado. Não cansaço físico, mas cansaço daquela vida inútil, cotidiano inútil. Chegava aos 50, sem família, sem perspectiva de levar outra vida, senão aquela, medíocre, todos os dias mediocremente iguais. Pagou a conta, sem qualquer cordialidade com o garçom de tantos anos. No elevador do prédio, uma senhora gorda, resfolegando, tentou puxar conversa, reclamando do transito. Como ele respondeu um raquítico “é mesmo”, ela desistiu. Felizmente chegou seu andar, o oitavo. Abriu a porta. Tudo absurdamente igual, como ele deixara: o livro aberto, ao lado da poltrona, a xícara de café, suja, pão espiando a cozinha. Sinal que a faxineira não aparecera. Era o que faltava para completar. Vagarosamente, como quem sabe o que fazer, ele caminhou até a varanda, que dava para a avenida, subiu no parapeito e mergulhou. Ainda teve tempo de sentir gotas de chuva molhar-lhe os cabelos.

  

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