Uma aventura aérea
Mal decolara do Santos Dumont, o avião mergulhara em densas
nuvens escuras, sem lhe dar tempo de saborear a visão do “Leme”, bairro que fora sua terra encantada por tantos anos. Pela
centésima ou mais vezes fazia o percurso Rio - São Paulo e, apesar de um certo
desconforto, o tempo chuvoso não lhe trazia temores. Partia do principio lógico
de que, se o piloto colocava a aeronave no ar, era porque não havia risco a se
considerar. Seguindo velho hábito, foi um dos primeiros a embarcar e, cinto
afivelado, abriu o jornal, não prestando a menor atenção nos demais passageiros
que faziam enorme tumulto com suas bagagens de mão. Viu, apenas de relance,
que, na poltrona do corredor, deixando vaga a do meio, sentara-se uma mulher,
sem se deter nos detalhes. Até ultrapassar as nuvens espessas, o avião parecia
dentro de um liquidificador, sensação inúmeras vezes experimentada por ele, o
que, fora o desconforto, não o intensificava, até porque sabia que logo estaria
em céu azul. A viagem prosseguiu tranquila até se aproximar de São Paulo,
quando nuvens, ainda mais espessas e negras jogaram o avião para baixo e para o
lado. De repente, ele notou a mulher a seu lado, com indisfarçável pavor,
suando no rosto, quase a gritar por socorro. Teria, quando muito, uns 40 anos,
bastante bonita e seu pânico a impedia de constatar que sua saia subira,
deixando à mostra exuberante par de coxas. Ela o fitou angustiada e ele, quase
mecanicamente, tomou-lhe as mãos, que ela apertou agradecida. O aviso de “afivelar cintos” deixou-a mais aflita e
ele, meigamente, procurou acalmá-la, que era assim mesmo e que em alguns
minutos estariam pousando em Congonhas. A seu pedido, a comissária trouxe um
copo d’água que, metade, ela derramou na saia. O gesto de enxugar as coxas, com
as mãos deixou-o excitado, o que era impróprio para as circunstâncias. Mas ele
era obcecado por coxas, fora por elas que se apaixonara por Maria Clara e
depois por Priscila. Finalmente, após meia hora de solavancos, os prédios da cidade
apareceram e, cortando o resto de nuvens, o avião pousou, deslizando suave pela
pista. Ela se despediu dele com tímido sorriso e saiu, ou melhor, fugiu entre
os apressados de sempre. Foram se reencontrar na esteira de bagagens e ela
tomou a iniciativa de se aproximar dele, desculpando-se pelo incomodo causado e
ele, por mero galanteio, disse-lhe que gostaria que todas as viagens fossem
como aquela. A chuva caia torrencialmente e a fila do táxi era interminável.
Ele a convidou para um uísque, até o tempo e o movimento diminuírem, o que ela
aceitou, de pronto. Chamava-se Andréia e era executiva de uma empresa de
informática, que tinha filial no Rio. Separada – o único filho morava com o pai
– vivia exclusivamente para o trabalho. Ele, habilmente, conduziu a conversa
para o lado da solidão, que o amor, apesar dos dissabores, era essencial à vida
e, para impressionar, recitou um trecho de poema de Camões, que fala do tema.
Ela riu mais solta – estavam na segunda dose – e, meigamente, segurou suas
mãos.
Dois anos se passaram
de sexo e encantamento. Andréia era, na cama, um vulcão em ebulição. Ele,
entrando nos 60, parecia ter recuperado a juventude. Uma manhã, após noite
frenética, ela, debruçada em seu ombro, falou em casamento. Foi a última vez
que se viram e ali, naquele mesmo bar do aeroporto, ele, agora sozinho,
esperava outra chuva passar.
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