quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Eça de Queiroz, presença constante
Meu pai, homem de poucas palavras, mas muitas leituras, exigia, como ritual ininterrupto, que, todas as noites, antes de ganhar a rua, eu lesse para ele, por meia ou uma hora. Os autores, ele os escolhia, despoticamente e, às vezes, num raro rompante de democracia, perguntava-me o que eu estava achando do livro. Esse ritual começou lá pelos meus 12 anos e continuou, mesmo já morando em São Paulo, quando ia a férias. Graças a ele, conheci Charles Morgan, A. J. Cronin, as peripécias jamesbondianas de Sherlock Holmes, Machado de Assis e, é claro, Eça de Queiroz, paixão dele, transmitida a mim. Quando ele morreu, minha mãe entregou-me, como relíquia preciosa, a coleção editada em 1945, alusiva ao centenário de nascimento do escritor, em capa de couro azul, com monograma em ouro. Foi nela que percorri, com meu pai, o mundo encantado, às vezes irônico, às vezes caústico, às vezes melancólico desse maravilhoso autor português, que ouso colocar ao lado de Zola e Vitor Hugo, como a trindade maior do realismo mundial. Por aqui, o realismo ficou por conta de Aluisio de Azevedo, apesar de sua obra monocárdica, sempre a repisar na questão social. Mas fico a falar de Eça, homem do mundo, que saiu de sua Povoa do Vazim e, depois de viver no Egito, de percorrer as Índias e a Inglaterra, foi morrer em Paris, onde era Embaixador. Começou a escrever aos 18 anos e parou, melhor, foi parado com a morte, deixando inacabada sua “A cidade e a Serra” de conteúdo bucólico, contrastando com o citadino, marca registrada de sua obra. De todos os lugares, por onde passou, Eça registrou fatos, formou personagens reais, tão reais que, com outras roupas, nós os encontramos, em nosso cotidiano. Como os miseráveis, que habitavam o “pátio dos milagres” de Vitor Hugo, ou como os mineiros contaminados e explorados de Zola.

Lá pelo final dos anos 80, resolvi fazer uma viagem a Portugal, uma viagem dedicada a Eça de Queiroz... e a meu pai. Para espanto do motorista guia que insistia em me levar a Estoril, com seu cassino e suas mulheres disponíveis, eu quis visitar os locais, descritos por Eça, como se isso me transformasse em personagem seu. Percorri o Roscio (onde Luiza suspirou seu amor proibido); percorri a “Estrada de Sintra”, palco do famoso crime, fantasiado por ele e seu amigo, Ramalho Ortigão; fui a Leiria, onde Jacinto bebia seu licor de damasco; estalei os lábios, comendo com ele, no Porto, um bacalhau à moda; reverenciei Coimbra, onde, “os vencidos da vida” envolviam as mulheres com suas capas pretas; e terminei em Povoa do Vazim, em cujo cemitério depositei jasmim – sua flor preferida – sobre seu tumulo despojado, onde se lê apenas, reproduzindo sua letra miúda, “eu sou apenas um pobre homem de Povoa de Vazim”. Lembro-me de que uma lágrima desprevenida percorreu meu rosto e empapou meu bigode. Senti que, ali, naquele momento, meu pai estava ao meu lado. Havíamos cumprido uma missão que, em silencio, combináramos. 

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