Ele se chamava, digamos, Manoel e eu o conhecia, porque era zelador do prédio,
onde, à época dos fatos, que serão contados, eu lá tinha escritório. Mais ou
menos, uns 50 anos, casado, dois filhos, um de 05, outro de 07 anos. Tínhamos
relações cordiais: ele trocava lâmpadas queimadas, limpava os aparelhos de ar
condicionado, favores que eu retribuía com digno pagamento. Era homem de
comportamento rude, rudeza adquirida de quem vivera, até os 18 anos, no agreste
pernambucano, filho único, com a morte do pai, a mãe mudara para Recife, a
trabalhar de empregada doméstica e ele veio para São Paulo, morar com um tio,
lá para as bandas do Grajaú. Semi-analfabeto, braços fortes, como todo
nordestino chegante, em semelhantes condições, virou servente de pedreiro, e,
finalmente mestre de obra. Uma noite, em um “bailão” frequentado, predominantemente, por “gente que veio do norte pra
cidade grande”, como cantava Belchior, conheceu Matilde, mulata sacodida,
seios empinados, gargalhada frouxa, corpo sempre em brasas. Seis meses depois
estavam casados, tiveram filhos, Manoel, em alegria constante. Virara zelador
do meu prédio, em cuja construção trabalhara. Era verdadeiro xerife: comandava
os funcionários (faxineiros, manobristas, porteiros) com mão-de-ferro e estava
sempre disposto a “sair na mão”, que
não era homem de levar desaforo para casa. Numa segunda-feira, como de hábito,
chego ao escritório às 8 horas e, ainda fazendo as orações, antes de começar o
trabalho, escuto a campainha e, minutos depois, a secretaria avisa-me, pelo
interfone, que Manoel queria falar-me. Recebi-o, com a cordialidade de sempre,
acomodo-o na poltrona a minha frente, ofereço café, que ele recusa e sua
fisionomia, entre fechada e abatida, dizia-me que algo grave acontecera. Ele
demorou para dizer a que veio e, quando começou a falar, voz embargada, seus
olhos umedeceram: “sabe, doutor, o senhor
me conhece a um tempão. Saio de casa às 05 da manhã para chegar aqui às 7 e só
saio, quando não tem mais ninguém, lá pelas oito da noite. Tem o Inácio, mas é
um preguiçoso e não confio nele. Chego em casa às 10 da noite, muitas vezes as
crianças estão dormindo. Amo minha mulher e juro que nem olhar pra outra eu
olho. Minha vida é minha família. Pois não é que já faz um mês que estou
desconfiado que Matilde está me corneando, com perdão da má palavra? Aí eu vim
me aconselhar com o senhor. Que que eu faço?” Dou prolongado gole d’agua,
para escolher as palavras certas: “Olha
Manoel, isto que você está dizendo é muito grave e você não pode tomar decisão
precipitada. Primeiro, você não pode desconfiar, mas ter certeza que ela lhe
trai. E somente quando tiver certeza, é que pode tomar uma decisão, sem
violência, que você tem dois filhos para criar. A solução é o divórcio que, é
claro, eu faço para você.” – “E o que
eu faço da minha vida, doutor, longe de minha mulher e meus filhos, que são
tudo que tenho? Melhor me matar.”, disse-me ele, já aos prantos. Procurei
acalmá-lo, que, primeiro, ele deveria ter certeza da traição e, mesmo que fosse
verdade, o divórcio não lhe tiraria o direito de ver e estar com os filhos. Da
maneira mais simples possível, expliquei-lhe o que era e como funcionava a
guarda compartilhada. Manoel saiu de meu escritório, deixando-me preocupado. Para homens rudes, que
suportaram terríveis adversidades, honra
não se lava com simples divórcio. No dia seguinte, uma sexta-feira, ao passar
pela portaria, perguntei ao Manoel como andavam as coisas. – “Agora tenho
certeza do chifre que a desinfeliz me botou”, disse-me ele, com indisfarçável
ódio na voz:- “Hoje vou estar fora,
Manoel. Não faça nenhuma bobagem e, na segunda feira, conversaremos. Porque você não passa o fim-de-semana na casa de seu tio?”, sugeri-lhe. Na segunda-feira,
chego ao prédio, tremendo alvoroço na portaria. Manoel havia matado os filhos e
se matara, na frente da esposa infiel. Subi para o escritório, sem condições de
trabalhar. Manoel escolhera a mais absurda forma de vingança: a mulher
carregaria, pelo resto da vida, a indescritível culpa pela morte dele e dos
filhos. Covarde, não tive coragem de ir ao enterro.
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