quinta-feira, 1 de março de 2018

A solução final


Ele se chamava, digamos, Manoel e  eu o conhecia, porque era zelador do prédio, onde, à época dos fatos, que serão contados, eu lá tinha escritório. Mais ou menos, uns 50 anos, casado, dois filhos, um de 05, outro de 07 anos. Tínhamos relações cordiais: ele trocava lâmpadas queimadas, limpava os aparelhos de ar condicionado, favores que eu retribuía com digno pagamento. Era homem de comportamento rude, rudeza adquirida de quem vivera, até os 18 anos, no agreste pernambucano, filho único, com a morte do pai, a mãe mudara para Recife, a trabalhar de empregada doméstica e ele veio para São Paulo, morar com um tio, lá para as bandas do Grajaú. Semi-analfabeto, braços fortes, como todo nordestino chegante, em semelhantes condições, virou servente de pedreiro, e, finalmente mestre de obra. Uma noite, em um “bailão” frequentado, predominantemente, por “gente  que veio do norte pra cidade grande”, como cantava Belchior, conheceu Matilde, mulata sacodida, seios empinados, gargalhada frouxa, corpo sempre em brasas. Seis meses depois estavam casados, tiveram filhos, Manoel, em alegria constante. Virara zelador do meu prédio, em cuja construção trabalhara. Era verdadeiro xerife: comandava os funcionários (faxineiros, manobristas, porteiros) com mão-de-ferro e estava sempre disposto a “sair na mão”, que não era homem de levar desaforo para casa. Numa segunda-feira, como de hábito, chego ao escritório às 8 horas e, ainda fazendo as orações, antes de começar o trabalho, escuto a campainha e, minutos depois, a secretaria avisa-me, pelo interfone, que Manoel queria falar-me. Recebi-o, com a cordialidade de sempre, acomodo-o na poltrona a minha frente, ofereço café, que ele recusa e sua fisionomia, entre fechada e abatida, dizia-me que algo grave acontecera. Ele demorou para dizer a que veio e, quando começou a falar, voz embargada, seus olhos umedeceram: “sabe, doutor, o senhor me conhece a um tempão. Saio de casa às 05 da manhã para chegar aqui às 7 e só saio, quando não tem mais ninguém, lá pelas oito da noite. Tem o Inácio, mas é um preguiçoso e não confio nele. Chego em casa às 10 da noite, muitas vezes as crianças estão dormindo. Amo minha mulher e juro que nem olhar pra outra eu olho. Minha vida é minha família. Pois não é que já faz um mês que estou desconfiado que Matilde está me corneando, com perdão da má palavra? Aí eu vim me aconselhar com o senhor. Que que eu faço?” Dou prolongado gole d’agua, para escolher as palavras certas: “Olha Manoel, isto que você está dizendo é muito grave e você não pode tomar decisão precipitada. Primeiro, você não pode desconfiar, mas ter certeza que ela lhe trai. E somente quando tiver certeza, é que pode tomar uma decisão, sem violência, que você tem dois filhos para criar. A solução é o divórcio que, é claro, eu faço para você.” – “E o que eu faço da minha vida, doutor, longe de minha mulher e meus filhos, que são tudo que tenho? Melhor me matar.”, disse-me ele, já aos prantos. Procurei acalmá-lo, que, primeiro, ele deveria ter certeza da traição e, mesmo que fosse verdade, o divórcio não lhe tiraria o direito de ver e estar com os filhos. Da maneira mais simples possível, expliquei-lhe o que era e como funcionava a guarda compartilhada. Manoel saiu de meu escritório, deixando-me  preocupado. Para homens rudes, que suportaram  terríveis adversidades, honra não se lava com simples divórcio. No dia seguinte, uma sexta-feira, ao passar pela portaria, perguntei ao Manoel como andavam as coisas. – “Agora tenho certeza do chifre que a desinfeliz me botou”, disse-me ele, com indisfarçável ódio na voz:- “Hoje vou estar fora, Manoel. Não faça nenhuma bobagem e, na segunda feira, conversaremos. Porque você não passa o fim-de-semana na casa de seu tio?”, sugeri-lhe. Na segunda-feira, chego ao prédio, tremendo alvoroço na portaria. Manoel havia matado os filhos e se matara, na frente da esposa infiel. Subi para o escritório, sem condições de trabalhar. Manoel escolhera a mais absurda forma de vingança: a mulher carregaria, pelo resto da vida, a indescritível culpa pela morte dele e dos filhos. Covarde, não tive coragem de ir ao enterro.

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