sexta-feira, 30 de maio de 2014

A história de João

João trabalhava em nossa casa, já lá iam dez anos. Pessoa simples, mal escrevia o nome, mas era absolutamente dedicado ao trabalho e, como minha esposa tem o habito de atravessar a madrugada, vendo televisão, João sentia-se na obrigação de fazer-lhe companhia, até que o sono invencível o levasse para o quarto. No outro dia, a mesa do café da manhã já estava  preparada para os que, logo cedo, começavam sua jornada. João, bom contador de caso, trazia, sempre, sorriso nos lábios e disposição para atender a todos. João era evangélico e se impressionava com as “curas”, rápidas e volumosas que se realizavam em sua “Igreja”. No dia do pagamento, João separava metade do salário e o entregava ao “Pastor”. Um dia, João aparece com dor abdominal que os chás e remédios tradicionais não conseguiam debelar. Meu filho, médico, especialista exatamente em aparelho digestivo, leva João para sua clínica, submete-o a uma bateria de exames e o resultado foi fulminante: câncer no intestino. João chorou, nós choramos, mas como a doença fora diagnosticada no início – dizia-nos nosso filho – uma cirurgia, extirpando a parte comprometida do intestino, permitiria a João continuar vivendo, com algumas limitações. Cirurgia marcada, eis que João, sorrindo, nos traz uma noticia, que seria cômica, se não fosse trágica: consultara o “Pastor” de sua “Igreja” e ele o aconselhou a esquecer a cirurgia, porque “Cristo o livraria da doença...” desde que, é claro, ele aumentasse sua contribuição financeira. Assim, João recusou-se à cirurgia, malgrado nossa pressão e ameaça – de nosso filho – de interná-lo à força. Uma manhã, João desapareceu, sem deixar vestígios. Procuramo-lo em todos os lugares possíveis, inclusive utilizando a Policia: frustração total. Quase um ano depois, João aparece esquelético, esquálido, atormentado por dores alucinantes. Minha esposa leva João para o hospital e um cirurgião, dos melhores, opera João. Abre e fecha, nada mais a fazer: o câncer espalhara por todo o organismo. Dias depois, João morre. O tempo fora o carrasco de João e aquele “Pastor”, que o convencera a não operar, seu mais furioso inimigo. Quis processar o “Pastor”, a “Igreja”, todos que induziram João a não se tratar. Sua família recusou-se: “não carece, doutor, foi a vontade de Deus”, disse-me a mãe,  em sua doce e conformada ignorância. Muitos anos se passaram e vejo, pela televisão, outro “Pastor” dividir sua fala entre cobrar contribuições e promover curas imediatas. Quantos “João” haverá naquela platéia, a acreditarem e a enriquecerem aquele “Pastor” que, em nome de Deus e de Cristo, induzem a erro tantos incautos, tomando-lhes o produto de duro trabalho. Trata-se de conduta ilícita, tipificada em nosso Código Penal (estelionato – art. 171; charlatanismo – art. 283; periclitação da vida e da saúde – art. 132; ou até mesmo homicídio doloso – art. 121). Todavia, em nome da liberdade de culto, protegida pela nossa Constituição Federal, essas “Igrejas” proliferam, espalhando falsas curas e matando outros “João”. É tempo, com urgência, de a Igreja Católica, porque santa e verdadeira, erguer, com desmesurada eloqüência, sua voz contra esses falsos pastores e suas seitas demoníacas, levando ao povo, principalmente a suas camadas mais humildes, a verdadeira palavra de Deus. A messe é grande e não podemos continuar a perdê-la com nossa leniência. Quanto ao “nosso” João, recordo e imito o poeta Manoel Bandeira: João chegando ao céu, São Pedro o recebendo: “entre, bom e doce João, fique à vontade, a casa é sua.”

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