A história de João
João trabalhava em nossa casa, já lá iam dez anos. Pessoa
simples, mal escrevia o nome, mas era absolutamente dedicado ao trabalho e,
como minha esposa tem o habito de atravessar a madrugada, vendo televisão, João
sentia-se na obrigação de fazer-lhe companhia, até que o sono invencível o
levasse para o quarto. No outro dia, a mesa do café da manhã já estava preparada para os que, logo cedo, começavam
sua jornada. João, bom contador de caso, trazia, sempre, sorriso nos lábios e
disposição para atender a todos. João era evangélico e se impressionava com as
“curas”, rápidas e volumosas que se
realizavam em sua “Igreja”. No dia do
pagamento, João separava metade do salário e o entregava ao “Pastor”. Um dia, João aparece com dor
abdominal que os chás e remédios tradicionais não conseguiam debelar. Meu
filho, médico, especialista exatamente em aparelho digestivo, leva João para sua
clínica, submete-o a uma bateria de exames e o resultado foi fulminante: câncer
no intestino. João chorou, nós choramos, mas como a doença fora diagnosticada
no início – dizia-nos nosso filho – uma cirurgia, extirpando a parte
comprometida do intestino, permitiria a João continuar vivendo, com algumas
limitações. Cirurgia marcada, eis que João, sorrindo, nos traz uma noticia, que
seria cômica, se não fosse trágica: consultara o “Pastor” de sua “Igreja” e
ele o aconselhou a esquecer a cirurgia, porque “Cristo o livraria da doença...” desde que, é claro, ele aumentasse
sua contribuição financeira. Assim, João recusou-se à cirurgia, malgrado nossa
pressão e ameaça – de nosso filho – de interná-lo à força. Uma manhã, João
desapareceu, sem deixar vestígios. Procuramo-lo em todos os lugares possíveis,
inclusive utilizando a Policia: frustração total. Quase um ano depois, João
aparece esquelético, esquálido, atormentado por dores alucinantes. Minha esposa
leva João para o hospital e um cirurgião, dos melhores, opera João. Abre e
fecha, nada mais a fazer: o câncer espalhara por todo o organismo. Dias depois,
João morre. O tempo fora o carrasco de João e aquele “Pastor”, que o convencera a não operar, seu mais furioso inimigo.
Quis processar o “Pastor”, a “Igreja”, todos que induziram João a não
se tratar. Sua família recusou-se: “não
carece, doutor, foi a vontade de Deus”, disse-me a mãe, em sua doce e conformada ignorância. Muitos
anos se passaram e vejo, pela televisão, outro “Pastor” dividir sua fala entre cobrar contribuições e promover
curas imediatas. Quantos “João”
haverá naquela platéia, a acreditarem e a enriquecerem aquele “Pastor” que, em
nome de Deus e de Cristo, induzem a erro tantos incautos, tomando-lhes o
produto de duro trabalho. Trata-se de conduta ilícita, tipificada em nosso
Código Penal (estelionato – art. 171; charlatanismo – art. 283; periclitação da
vida e da saúde – art. 132; ou até mesmo homicídio doloso – art. 121). Todavia,
em nome da liberdade de culto, protegida pela nossa Constituição Federal, essas
“Igrejas” proliferam, espalhando
falsas curas e matando outros “João”.
É tempo, com urgência, de a Igreja Católica, porque santa e verdadeira, erguer,
com desmesurada eloqüência, sua voz contra esses falsos pastores e suas seitas
demoníacas, levando ao povo, principalmente a suas camadas mais humildes, a
verdadeira palavra de Deus. A messe é grande e não podemos continuar a perdê-la
com nossa leniência. Quanto ao “nosso”
João, recordo e imito o poeta Manoel Bandeira: João chegando ao céu, São Pedro
o recebendo: “entre, bom e doce João,
fique à vontade, a casa é sua.”
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