É sempre oportuno lembrar-nos daqueles que,
ao longo de nossas vidas, deixaram em nós, a marca de suas influências. É a
maneira de mantê-los vivos, quase que conversando conosco, oferecendo-nos o
doce gosto de suas personalidades marcantes. Por isso, falar sobre Carlos
Lacerda e minha fugaz convivência com ele é a oportunidade para reviver
momentos importantes e inesquecíveis em minha vida. E o faço neste dia,
passados exatos 37 anos de sua morte.
Carlos Lacerda foi, e talvez continue sendo,
a maior influência ideológica que minha juventude absorveu e que iria marcar,
para sempre, minhas convicções políticas. A memória mais remota remete-me lá
pelos 12 anos de idade, ouvidos colados à Rádio Mairinque Veiga, Lacerda a
desancar Juscelino e sua maior megalomania, chamada Brasília. O tempo provou
que Lacerda estava certo: Brasília, nem de longe, cumpriu seu objetivo, que
seria a interiorização do progresso. O jornalista de “A Folha”, Fernando Rodrigues, em magnífico artigo, quando do
aniversário daquela cidade, demonstrou o retumbante fracasso social e econômico
em que ela se tornou, por nada ter acrescentado à região. Além do mais,
Brasília “isolou” o poder das
injunções populares, possibilitando que grandes falcatruas fossem e continuem a
serem perpetradas. Lacerda tinha essa capacidade de premonição, apanágio apenas
dos gênios. Entretanto, só vim a conhecê-lo, pessoalmente, em 1963. Ele acabara
de ser indicado candidato à Presidência da República, pela UDN, no pleito, que
se realizaria em 1965 e já percorria o País em pré-campanha. Foi ele fazer uma
palestra na Faculdade de Direito da PUC-SP, onde eu estudava. Lá, tínhamos um
partido – o “PIU – Partido Idealista
Universitário” – que nós, seus filiados, tínhamos a risível pretensão de
ser a “UDN acadêmica”. Batíamos de
frente com a “JUC – Juventude
Universitária Católica”, cujo mentor era o Padre Enzo, Diretor da Faculdade
de Filosofia da mesma Universidade, que nós, “udenistas”, execrávamos, por considerá-lo “comunista de batina”. Apesar de todas as manifestações contrárias,
Lacerda foi fazer sua palestra e eu, que era o orador do partido, fui escalado
para saudá-lo. Fiquei uma semana escrevendo e ensaiando meu discurso e, na
hora, suava e tremia, tal o nervosismo. Acabada a palestra, Lacerda, sempre
atencioso e gentil, abraçou-me e me convidou para conhecer algumas obras
importantes, que estava realizando na então Guanabara, da qual era Governador.
A falta d’água era problema crônico naquela cidade. Havia, até, uma música de
carnaval dos anos 50, cujo refrão dizia: “Rio de Janeiro, cidade que nos seduz,
de dia falta água, de noite falta luz...” Pois Lacerda, mesmo com o boicote
financeiro do Poder Central (primeiro Jango depois o próprio Castello Branco)
estava construindo a “Adutora do Guandu”,
que iria resolver, definitivamente, o problema de falta d’água na cidade. Outra
obra importante era o “Túnel Rebouças”,
que ligaria a zona norte à zona sul, em poucos minutos. Até então, o único elo
entre as duas regiões era a Avenida Brasil, o que, além de alongar a distância,
provocava, já naquela época, enormes engarrafamentos. A “esquerda festiva” era contra o túnel porque – alegavam –
infestaria de “suburbanos” as praias
do Leblon e de Ipanema. Era uma época incrivelmente contraditória: a esquerda,
que suspirava e revirava os olhos por Cuba, era tremendamente elitista e
homens, realizadores de obras populares, como Lacerda, eram tidos como
reacionários. Mas o certo é que, um dia, recebi, em minha casa, o convite para
a tal visita. No dia e hora marcados, apresentei-me no Palácio Guanabara e com
mais outras pessoas, também convidadas percorremos inúmeras obras, inclusive a “Vila Kennedy” para onde estavam sendo
transferidas as pessoas, retiradas da “Favela
do Pasmado”, que se instalara sobre o túnel novo de Copacabana. Ao invés de
casas improvisadas com tapume, Lacerda mandara construir moradias decentes, com
água, luz e esgoto, o que era um luxo, naquela época. A “Rodoviária Novo Rio” foi considerada pela oposição rancorosa, obra
faraônica, pelo seu tamanho. Menos de 20 anos após sua inauguração, já se
mostrava pequena. Eu e os outros visitantes, ficamos hospedados no “Hotel Novo Mundo”, ali na Praia do
Flamengo, onde estava sendo construída a maior obra urbanística do mundo, o
aterro do mesmo nome e que é um dos mais belos cartões postais do Rio. À noite,
depois da visita, Lacerda nos ofereceu um jantar, quando nos apresentou extensa
relação de suas obras, o que nos deixou a todos simplesmente maravilhados.
Incrível a capacidade de trabalho daquele homem que ainda encontrava tempo,
madrugada adentro, para dar “incertas”
em hospitais e delegacias, a fim de constatar se tudo estava funcionando a
contento. De volta a São Paulo, e como sempre tive mania de escrever,
mandei-lhe algumas cartas, que ele jamais deixou sem resposta, chamando-me “meu jovem causídico”. Mesmo sabendo, é
claro que as respostas vinham de algum “ghost
writer”, era sempre uma deferência, que me encantava. Voltei a me encontrar
com Lacerda, no dia 31 de março de 1964, que coincidiu estar eu no Rio. Naquela
época, eu, habitualmente, passava o fim de semana no Rio. Ia de carona com meu
cunhado ou algum amigo dele, todos pilotos da Varig, que tinha acabado de
comprar a “Real Aerovias”. Saía de
São Paulo em um dos vôos noturnos da 6ª feira e voltava do Rio à noite do
domingo. Ficava hospedado na casa de minha irmã, que morava na Rua Paissandu,
bem perto do Palácio Guanabara. Meu roteiro era, de dia, praia e, à noite, o “Beco das Garrafas”, então o templo da
bossa nova. Passava todo o tempo saboreando uma única cerveja – o dinheiro
pouco não suportava mais do que isso – enquanto via e ouvia Vinicius, Tom,
Claudete Soares, Lucio Alves e outros bambas da MPB. Também freqüentava o “Cine Paissandu”, templo do cinema novo,
onde se fazia pose de intelectual e se assistia a filmes chatíssimos. Pois no
dia 31 de março, estoura a Revolução e, pelo rádio, fico sabendo que o
Almirante Aragão dirige-se ao Palácio Guanabara, para prender Lacerda. Eu, que
estava a menos de 500 metros de lá, saí correndo em direção ao Palácio, para me
juntar a tantos outros que lá estavam para defender nosso líder. Defender, eu
não sabia como, já que nunca atirara nem mesmo com espingarda de chumbinho. Mas
sabia que a história estava acontecendo e queria participar dela. O Palácio
estava protegido por caminhões de lixo que eram, por assim dizer, a divisão “panzer” do Lacerda. Já dentro do
Palácio, após dar meu nome a um soldado, creio que da Aeronáutica, subi a
escadaria central, que desembocava em um enorme salão, àquela hora apinhado de
gente. A um canto, falando ao telefone e, com a outra mão, empunhando uma
metralhadora, estava Lacerda. Encerrada a ligação, dirigi-me para cumprimentá-lo
e ele, para meu espanto, abraçou-me calorosamente. Lembro-me, vagamente, de que
fui encaminhado ao Coronel Gustavo Borges, então Secretário de Segurança, que
estava distribuindo as armas para defesa do Palácio. Dele recebi um fuzil que
segurei com extremo cuidado, já que, desajeitado como sou, tinha medo que
disparasse. Felizmente o ataque não veio e Lacerda, em inflamado discurso,
saudou a Revolução e convocou uma reunião de seu Secretariado. Voltei para São
Paulo e, à distância, fui assistindo ao esgarçamento das relações de Lacerda
com o Governo Castello Branco. Lacerda tinha um grande e legítimo projeto, o de
ascender à Presidência a República. Pertencia ele a uma geração – que
infelizmente desapareceu – em que se almejava chegar ao Poder para realizar um
trabalho, em favor da população, o fazer pelo prazer de fazer e não, como
agora, que se quer chegar ao Poder, por puro interesse pessoal. Foi com essa
filosofia de atender ao interesse popular que Lacerda governou a Guanabara:
construiu a Adutora do Guandu; construiu 500 quilômetros de esgoto; o Túnel
Rebouças; o Emissário Submarino; o Aterro do Flamengo; a Rodoviária Novo Rio;
cerca de 200 escolas de ensino fundamental; promoveu a desfavelização do
Pasmado; integrou a Barra, que nem telefone tinha, à cidade; além de vários
viadutos. Quando olhamos para trás e contemplamos esse magnífico conjunto de
realizações, temos que nos perguntar como tudo isso foi possível, malgrado a
odiosa perseguição do Poder Central, principalmente do Presidente Castello
Branco, que quis seduzi-lo, oferecendo-lhe a Embaixada em Paris, que ele recusou,
porque julgava ter o direito de disputar a Presidência da República. Tinha se
preparado, a vida inteira, para isso, e não aceitaria, passivamente, que esse
direito lhe fosse usurpado. Castello, apunhalando-o pelas costas, urdiu a
candidatura Negrão de Lima, prorrogou seu próprio mandato e passou a tratar
Lacerda como inimigo, chegando a articular com a oposição a rejeição das contas
do Governador. Missão impossível. Nenhum homem público teve sua vida pessoal e
sua administração tão revolvida quanto Lacerda. Não encontraram qualquer
irregularidade, qualquer desvio de conduta. Da mesma forma que era um
trabalhador compulsivo, entendia que a honestidade, mais que uma virtude, era
uma obrigação, principalmente do homem público. Quando, em 1966, Castello deixou
claro que não haveria perspectiva de devolver o Governo aos civis, Lacerda, de
forma alucinada, engendrou a frente ampla, juntando-se a Juscelino e Jango.
Naquela oportunidade, tive a ousadia de escrever-lhe uma carta, acusando-o de
destruir sua majestosa história, aliando-se a quem mais combatera, tendo-nos
como fiéis escudeiros. Era como se nosso Comandante-em-chefe passasse para o
lado do inimigo. Foi assim que me senti. Não entendi, nem aceitei, apesar da
resposta, que ele me enviou, falando em salvar a democracia, em superiores
interesses da pátria etc. Não dava para engolir Juscelino e Jango. Era, “mutatis mutandi” deixar de torcer pelo
Botafogo e passar a torcer pelo Flamengo que, diga-se de passagem, era o time
dele. Eu era – olha a imodéstia outra vez – “revolucionário”
até a raiz do cabelo e também achava prematuro o retorno dos civis ao Poder.
Somente vim a ter contato com Lacerda, outra vez, quando, após sua cassação,
foi ele preso e consegui visitá-lo, graças à interferência de um General, que
fora amigo de meu pai. Lacerda, em que pese a inteligência, a conversa fácil,
perdera o entusiasmo e, desta vez, falava, para valer, em sair da vida pública
e fazer o que nunca pudera, isto é, dedicar-se à família. Após esse episódio,
não mais o vi, até o lançamento de sua obra “A
Casa de meu Avô”. Noite de autógrafo em sua “Nova Fronteira”, editora que fundara com seus filhos, Sérgio e
Sebastião. Quando cheguei à mesa, ele se levantou e me deu um forte abraço. No
livro, apôs uma dedicatória eloqüente, como ele: “Ao jovem causídico, transfiro meu entusiasmo pelo Brasil.” Eu, já
morando no Rio, de vez em quando ia visitá-lo na Editora, sempre ao final da
tarde. Falávamos exclusivamente em literatura, já que ele proibia que se
falasse em política, se bem que, de forma irônica, criticava-me por “servir à ditadura”.
Era um sábado chuvoso, sem qualquer
perspectiva de praia. Sobrava esperar pela tarde e ir torcer pelo Botafogo.
Toca o telefone, era o Almirante Meziano, meu companheiro de Ministério da
Fazenda e Lacerdista empedernido, como eu. “Desculpe
ligar, mas o Lacerda morreu, está sendo velado no São João Batista, e o enterro
será às cinco da tarde.” Atirei-me ao sofá, entre estupefato e absurdamente
triste, porque nem mesmo sabia que ele estava doente. Troquei de roupa e lá fui
para a Rua Real Grandeza. O velório cheio, mas não tanto quanto ele merecia. A
Revolução e os covardes de sempre temiam o Lacerda, mesmo morto. Fiquei até
umas três horas da tarde e corri para o Maracanã. O Botafogo perdeu e eu
aproveitei para chorar duas grandes paixões de minha vida.
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