Uma tarde no Tribunal
A princípio, a cena podia até ser
considerada bizarra. Lá estava o homem, sentado na primeira fila da sala de
julgamento do Tribunal. De onde eu estava, via-o apenas de lado, com seu
surrado terno preto, brilhando de tanto usar e sua poída camisa amarelada, que,
um dia, provavelmente fora branca. Olhava, fixa e atentamente para os
Desembargadores, a indicar que aguardava o julgamento do seu processo. Sem
dúvida que aquele homem, simples, quase roto, no vestir, destoava do ambiente
austero da Corte, Juízes com suas togas pretas e advogados, impecavelmente
vestidos. Suspensa a sessão, para um lanche dos Magistrados, não resisti à
tentação de me sentar ao lado daquele estranho homem. Cumprimentei-o quase
sussurrando e ele, devolveu-me o cumprimento com um contido sorriso. Sua estreita
gravata alcançava metade do peito e devia ter a idade do resto da roupa. Perguntei
se seu processo seria julgado e ele, repousando a mão sobre a minha, que
descansava no espaldar da cadeira, respondeu-me que não tinha nenhum processo a
ser julgado, era aposentado, viúvo, os filhos casados e distantes. Como não
suportava ficar em casa, sozinho, vinha todos os dias assistir às sessões do
Tribunal, entrando na sala que tivesse mais movimento. Quando os julgamentos
terminaram, convidei-o para um café e ele, com indisfarçável satisfação, aceitou.
Procurei uma mesa de canto, na lanchonete da “Conde do Pinhal”, que habitualmente freqüento e lá nos instalamos. Contou-me
um pouco de sua vida: 80 anos, funcionário público aposentado da vizinha
Secretaria da Justiça, sonhara, em jovem, ser advogado, defendendo grandes
causas no Tribunal do Júri. Salário medíocre, família constituída cedo, o sonho
foi sendo adiado, até ser sepultado de vez. Os filhos – dois - casaram-se, mudando
para o interior, visitando-o raramente. A mulher, a única que tivera por toda a
vida, morrera, já lá iam quase 20 anos, vítima de um câncer fulminante. Pensara
em se matar, mas havia os filhos a acabar de criar. Em resumo: sem mulher, filhos
distantes, ficou só, vivendo de parca aposentadoria. Morava ali ao lado, na “Tabatinguera”, quarto alugado. Quando o
Tribunal do Júri era no Palácio da Justiça, não perdia os julgamentos. Conhecia
de nome (e até citou alguns) os principais advogados e promotores da época. Depois
que o Júri se transferiu, primeiro para a Vila Mariana e depois para a Barra
Funda, não mais lá foi: a distância era muita e o júri perdera a majestade (com
o que eu, quase tão velho e saudosista quanto ele, concordei). Passou, então, a
freqüentar as sessões do Tribunal que, ao contrário do Júri, funcionava todos
os dias, pela manhã e pela tarde. Conhecia termos e até teses jurídicas, o que
faria inveja a muitos advogados recém formados. Como a noite já anunciava sua
presença, saímos, cada qual em sua direção. Só então me dei conta que não lhe
perguntara o nome, nem ele o meu. Não sei por que, mas me lembrei de um verso
de um poeta de minha juventude: “Chorei, choraste!
Tinhas a alma de sonho povoada e a alma de sonhos povoada eu tinha...”
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