Chego em casa, chuva miúda e fria, devastando o corpo,
estuprando a alma e Rodolfo abandona o conforto de seu protegido canto e vem me
receber, com a alegria costumeira. Traz-me o afago, sob forma de patas molhadas
que me sujam a roupa. Abraço-o, com a saudade de quem já partiu e ele a mim,
como a dizer-me: “não vá, fique mais um
pouco”. Sento-me na cadeira, embaixo da escada e ele, parado a minha frente,
fita-me, olhos nos olhos, esperando que eu lhe diga alguma coisa. Apenas olho
para ele, acarinhando o pelo molhado, que deixa pequenos tufos nas mãos. De
repente, ele rompe o silêncio, que se instalou entre nós: - “você não vai entrar, trocar essa roupa
molhada, esquentar o corpo com uma dose de uísque?” Respondo-lhe que
prefiro ficar ali, escutando o silêncio da rua, vendo a chuva esquálida
derramar-se, iluminada pela luz do poste. – “Do que você sente falta?”, quer saber ele. – “De tanta coisa – respondo-lhe eu – que não saberia dizer-lhe todas.
Como é janeiro e deveria ser verão, para começar, sinto falta da praia, mais
precisamente do Leme onde chegava, junto com o sol e só arredava o pé, quando
ele se vestia de vermelho para adormecer. Sinto falta do chopp gelado, bebido,
ali no “Sereia do Leme”, ao lado dos desconhecidos de sempre que, de tanto
desconhecer, tornavam-se íntimos. Sinto falta de quando esta rua era minha, ou
de todos nós, quando jogávamos bola, bebíamos e cantávamos, como se não houvesse
amanhã. Sinto falta de todos os que vieram antes de você e lamento que você
tenha chegado, eu já cansado e trôpego, sem podermos correr, a solta, eu
exibindo todos, porque todos eram lindos e fortes. Sinto falta – e como sinto –
do carinho que se foi e se perdeu, a meio de outras noites tristes e chuvosas,
como esta. Na verdade, eu não o merecia, Rodolfo, não agora, que sou apenas
vaga lembrança do que fui menino, tomando banho no rio de minha aldeia, o mais
lindo de todos, simplesmente porque, como melhor disse o Pessoa, porque era o
rio de minha aldeia. Sinto saudade das tardes inúteis, gastas na biblioteca
pública, a lutar com os Ciceros e os Virgilios. Sinto saudade do “uísque sauer”,
bebido, ali, no “Paribar”, a espera da doce amada sair do trabalho. Sinto
saudade de tanta coisa boa, que vivi, que nem devia sentir saudade, que é dor
que dói doída, mas apenas recordação, que, de tão boas, nos colocam sorriso no
rosto, ao invés deste gosto amargo na boca. Você tem razão Rodolfo, melhor eu
entrar, deixar que esta tristeza, grudada em mim, escoe pelo ralo do banheiro,
sirva generosa dose de bebida qualquer, leia um livro qualquer, ouça uma música
qualquer e durma, na fugidia esperança que não haja amanhã. Boa noite, meu doce
amigo. Levo comigo, em seus pelos e em seu cheiro, um pouco de você. Só lhe
peço uma coisa: que não se vá antes de mim,
porque não suportarei a ausência destes pelos e deste cheiro, deste chegar,
sabendo-o ausente. Permita que eu vá antes, falta pouco, já ouço o cantar doce
de minha mãe, o falar debochado de meu irmão, os braços abertos, prontos para o
abraço, dos amigos apressados . E tenha paciência comigo, porque “sou apenas um
velho barco, que guarda em seu casco as lamentações do mar batendo.””
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