quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Mentem-me que é verão

Chego em casa, chuva miúda e fria, devastando o corpo, estuprando a alma e Rodolfo abandona o conforto de seu protegido canto e vem me receber, com a alegria costumeira. Traz-me o afago, sob forma de patas molhadas que me sujam a roupa. Abraço-o, com a saudade de quem já partiu e ele a mim, como a dizer-me: “não vá, fique mais um pouco”. Sento-me na cadeira, embaixo da escada e ele, parado a minha frente, fita-me, olhos nos olhos, esperando que eu lhe diga alguma coisa. Apenas olho para ele, acarinhando o pelo molhado, que deixa pequenos tufos nas mãos. De repente, ele rompe o silêncio, que se instalou entre nós: - “você não vai entrar, trocar essa roupa molhada, esquentar o corpo com uma dose de uísque?” Respondo-lhe que prefiro ficar ali, escutando o silêncio da rua, vendo a chuva esquálida derramar-se, iluminada pela luz do poste. – “Do que você sente falta?”, quer saber ele. – “De tanta coisa – respondo-lhe eu – que não saberia dizer-lhe todas. Como é janeiro e deveria ser verão, para começar, sinto falta da praia, mais precisamente do Leme onde chegava, junto com o sol e só arredava o pé, quando ele se vestia de vermelho para adormecer. Sinto falta do chopp gelado, bebido, ali no “Sereia do Leme”, ao lado dos desconhecidos de sempre que, de tanto desconhecer, tornavam-se íntimos. Sinto falta de quando esta rua era minha, ou de todos nós, quando jogávamos bola, bebíamos e cantávamos, como se não houvesse amanhã. Sinto falta de todos os que vieram antes de você e lamento que você tenha chegado, eu já cansado e trôpego, sem podermos correr, a solta, eu exibindo todos, porque todos eram lindos e fortes. Sinto falta – e como sinto – do carinho que se foi e se perdeu, a meio de outras noites tristes e chuvosas, como esta. Na verdade, eu não o merecia, Rodolfo, não agora, que sou apenas vaga lembrança do que fui menino, tomando banho no rio de minha aldeia, o mais lindo de todos, simplesmente porque, como melhor disse o Pessoa, porque era o rio de minha aldeia. Sinto saudade das tardes inúteis, gastas na biblioteca pública, a lutar com os Ciceros e os Virgilios. Sinto saudade do “uísque sauer”, bebido, ali, no “Paribar”, a espera da doce amada sair do trabalho. Sinto saudade de tanta coisa boa, que vivi, que nem devia sentir saudade, que é dor que dói doída, mas apenas recordação, que, de tão boas, nos colocam sorriso no rosto, ao invés deste gosto amargo na boca. Você tem razão Rodolfo, melhor eu entrar, deixar que esta tristeza, grudada em mim, escoe pelo ralo do banheiro, sirva generosa dose de bebida qualquer, leia um livro qualquer, ouça uma música qualquer e durma, na fugidia esperança que não haja amanhã. Boa noite, meu doce amigo. Levo comigo, em seus pelos e em seu cheiro, um pouco de você. Só lhe peço uma coisa:  que não se vá antes de mim, porque não suportarei a ausência destes pelos e deste cheiro, deste chegar, sabendo-o ausente. Permita que eu vá antes, falta pouco, já ouço o cantar doce de minha mãe, o falar debochado de meu irmão, os braços abertos, prontos para o abraço, dos amigos apressados . E tenha paciência comigo, porque “sou apenas um velho barco, que guarda em seu casco as lamentações do mar batendo.””

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