terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Dois perdidos numa noite inútil

O frescor da noite, que se findava, era convite para um bater de pernas, sem rumo, pelo entorno de minha casa. O parque já fechava seus portões, a padaria e o posto de gasolina – únicos estabelecimentos comerciais do pedaço – também restavam com as luzes apagadas. Andar pelas ruas desertas, aqui e ali, casas com televisão ligada, era prazer que, de largo tempo, não desfrutava e Rodolfo, mais por companhia do que por segurança, acompanhou-me nessa vadiagem. Em que pese o crescimento do bairro, o “meu lado” reteve-se, no tempo, conservando-me a memória, como se ele, o tempo, não tivesse passado. Fiquei a contar a Rodolfo, estórias de pessoas, algumas queridas, que moravam nessa ou naquela casa, alguns já transferidos para o Cemitério da Vila Mariana, ali no início da ladeira. Como regra, nós nos apegamos ao bairro, onde moramos, porque nele nos sentimos seguros, na expressão ampla do termo: Damo-nos com as pessoas, sabemos onde encontrar encanador, pedreiro, encomendamos jornal ou revista, na banca, compramos fiado e temos a certeza de que, se formos acometidos de mal súbito, alguém, que sabe onde moramos, nos levará até lá. Moro na mesma casa  há 40 anos e, apesar de ter ela “crescido”, após a mudança de ninho dos filhos, não cogito em dela sair, a não ser para o crematório da Vila Alpina. Rodolfo quebra o silêncio, perguntando-me quantos, como ele, percorreram comigo aquele trajeto. Faço rápida conta e, salvo omissão imperdoável, concluo 30, desde Taty, que veio conosco do Rio, até Clóvis, o último a chegar, mas, adianto-lhe até para entumecer-lhe o ego, que com nenhum outro mantive relacionamento intelectual. Esta relação com bichos remonta a mais tenra infância e tenho a esperança de os encontrar do “outro lado”, eles ladrando, alegremente, pelo nosso reencontro. Confesso que tenho certo preconceito com pessoas que dizem não gostar de animais. Passam-me pouco confiança e revelam forte dose de egoísmo. Quase uma hora depois, retornamos à casa e ainda deixei-me ficar, sentado ao pé da escada e me pus a lembrar de um tempo em que a vida era algo mais simples e a levava cheio de sonhos e fantasias. Um saruê atravessa a rua, provavelmente em direção ao lixo, amontoado ao final da rua, onde, por certo, encontrará comida. Rodolfo late, agressivo e o saruê se encolhe, esperando pelo pior. Acalmo Rodolfo, acariciando-lhe o pelo: “deixe-o, como nós, ele quer apenas sobreviver.” Rodolfo recolhe-se a meus pés, o saruê, agora livre do perigo, segue seu caminho e a noite termina comigo, a cantar, baixinho  canção a falar de amores doídos e coisas assim. Abraço Rodolfo, desejando-lhe bons sonhos e ele, só para me agradar, lambe-me o rosto.

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