O frescor da noite, que se findava, era convite para um bater
de pernas, sem rumo, pelo entorno de minha casa. O parque já fechava seus
portões, a padaria e o posto de gasolina – únicos estabelecimentos comerciais
do pedaço – também restavam com as luzes apagadas. Andar pelas ruas desertas,
aqui e ali, casas com televisão ligada, era prazer que, de largo tempo, não desfrutava
e Rodolfo, mais por companhia do que por segurança, acompanhou-me nessa
vadiagem. Em que pese o crescimento do bairro, o “meu lado” reteve-se, no tempo, conservando-me a memória, como se
ele, o tempo, não tivesse passado. Fiquei a contar a Rodolfo, estórias de
pessoas, algumas queridas, que moravam nessa ou naquela casa, alguns já transferidos
para o Cemitério da Vila Mariana, ali no início da ladeira. Como regra, nós nos
apegamos ao bairro, onde moramos, porque nele nos sentimos seguros, na
expressão ampla do termo: Damo-nos com as pessoas, sabemos onde encontrar
encanador, pedreiro, encomendamos jornal ou revista, na banca, compramos fiado
e temos a certeza de que, se formos acometidos de mal súbito, alguém, que sabe
onde moramos, nos levará até lá. Moro na mesma casa há 40 anos e, apesar de ter ela “crescido”, após a mudança de ninho dos
filhos, não cogito em dela sair, a não ser para o crematório da Vila Alpina.
Rodolfo quebra o silêncio, perguntando-me quantos, como ele, percorreram comigo
aquele trajeto. Faço rápida conta e, salvo omissão imperdoável, concluo 30,
desde Taty, que veio conosco do Rio, até Clóvis, o último a chegar, mas,
adianto-lhe até para entumecer-lhe o ego, que com nenhum outro mantive
relacionamento intelectual. Esta relação com bichos remonta a mais tenra
infância e tenho a esperança de os encontrar do “outro lado”, eles ladrando, alegremente, pelo nosso reencontro.
Confesso que tenho certo preconceito com pessoas que dizem não gostar de
animais. Passam-me pouco confiança e revelam forte dose de egoísmo. Quase uma
hora depois, retornamos à casa e ainda deixei-me ficar, sentado ao pé da escada
e me pus a lembrar de um tempo em que a vida era algo mais simples e a levava
cheio de sonhos e fantasias. Um saruê atravessa a rua, provavelmente em direção
ao lixo, amontoado ao final da rua, onde, por certo, encontrará comida. Rodolfo
late, agressivo e o saruê se encolhe, esperando pelo pior. Acalmo Rodolfo,
acariciando-lhe o pelo: “deixe-o, como
nós, ele quer apenas sobreviver.” Rodolfo recolhe-se a meus pés, o saruê,
agora livre do perigo, segue seu caminho e a noite termina comigo, a cantar,
baixinho canção a falar de amores doídos
e coisas assim. Abraço Rodolfo, desejando-lhe bons sonhos e ele, só para me
agradar, lambe-me o rosto.
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