quarta-feira, 18 de outubro de 2017

“Pra não dizer que não falei em flores”



A este ponto, faz-se mister, agora que o herói se foi, contar história passada, do tempo em que eu era entrante na “pior idade” e minha casa, ao invés desta tristeza infinita, era um dar sem conta de festas e gargalhadas. Para começar, preciso dizer que temos amiga, de todo coração, que vem desde a época de nós solteiros. Ela viajou todo este tempo conosco e, agora mesmo, está lá em casa, cuidando de minha esposa, recém-chegada da UTI, para onde foi parar pelo seu irremovível amor pelo cigarro. Mas, a história não é desta amiga, que papel não há para escrever sobre ela, tanto a devo em carinho e abnegação. Isto sem falar do reconhecimento, que não saberia dizer, por falta de engenho e arte. Daí que esta amiga tinha um pai, à época, batendo os 70. Homem simples, abundante em caráter e parco, em recursos materiais. Absolutamente fiel à esposa, mas a queria, todos os dias, às vezes, mais de uma vez. Até que a esposa, também avançada em anos, cansou-se de tanto querer e até o  liberou para distantes quereres. Ele disse não, pois  só a ela por premio pretendia”. Ela inventou pretextos para mantê-lo à distância e ele, lança em riste, queria combater o superlativo combate. Certa noite, quando caía chuva diluviana, recebíamos amigos para conversa e bebida fartas. Lá pelas tantas, nossos cachorros – melhor campainha não há – latem, prontos para o ataque. Chego à janela e vejo, parado defronte ao portão, um senhor, austeramente vestido, sob guarda-chuva, tímido protetor. Demoro a reconhecer o pai da minha amiga e, quando consigo, introduzo-o a meu então escritório, na parte inferior da casa. Ofereço-lhe toalha para secar o que fosse possível e pergunto o que posso fazer por ele, em hora tão tardia, debaixo daquele aguaceiro. Depois de alguns momentos de indescritível  constrangimento, ele diz a que veio: precisa de urgente e eficaz medida judicial para compelir a esposa a cumprir o “debitum conjugale” que, a juízo dele, devia ser cumprido, pelo menos, uma vez ao dia. Tomado por indisfarçável inveja, sugeri-lhe que esquecesse a via judicial, sempre lenta e ineficaz,  e procurasse o caminho da sedução, talvez rosas brancas, para o amor comedido, ou vermelhas, para o amor ardente. Vermelhas, resolveu ele, mas onde encontrá-las, já, naquela noite, que o ardor não podia esperar? Lembrei-me das floriculturas do Largo do Arouche, que, à época, atravessavam a madrugada. Coloquei-o no carro e o levei até lá. Depois, flores colhidas, deixei-o à porta de seu prédio, desejando-lhe boa-sorte. Aventura esquecida, na segunda feira seguinte, estava eu debruçado sobre a habitual monotonia, quando, de surpresa, recebo a visita de meu herói. Traz-me uma garrafa de vinho e sorriso aberto, como a me dizer que a amada “se abriu”, diante das rosas.
Quando ele morreu, ela, finalmente, descansou, em paz. Tempos depois, também morreu ela, de saudade, talvez.

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