A este ponto, faz-se mister, agora que o herói se foi, contar
história passada, do tempo em que eu era entrante na “pior idade” e minha casa,
ao invés desta tristeza infinita, era um dar sem conta de festas e gargalhadas.
Para começar, preciso dizer que temos amiga, de todo coração, que vem desde a
época de nós solteiros. Ela viajou todo este tempo conosco e, agora mesmo, está
lá em casa, cuidando de minha esposa, recém-chegada da UTI, para onde foi parar
pelo seu irremovível amor pelo cigarro. Mas, a história não é desta amiga, que
papel não há para escrever sobre ela, tanto a devo em carinho e abnegação. Isto
sem falar do reconhecimento, que não saberia dizer, por falta de engenho e
arte. Daí que esta amiga tinha um pai, à época, batendo os 70. Homem simples,
abundante em caráter e parco, em recursos materiais. Absolutamente fiel à
esposa, mas a queria, todos os dias, às vezes, mais de uma vez. Até que a
esposa, também avançada em anos, cansou-se de tanto querer e até o liberou para distantes quereres. Ele disse
não, pois “só a ela por premio pretendia”. Ela inventou pretextos para
mantê-lo à distância e ele, lança em riste, queria combater o superlativo
combate. Certa noite, quando caía chuva diluviana, recebíamos amigos para
conversa e bebida fartas. Lá pelas tantas, nossos cachorros – melhor campainha
não há – latem, prontos para o ataque. Chego à janela e vejo, parado defronte
ao portão, um senhor, austeramente vestido, sob guarda-chuva, tímido protetor.
Demoro a reconhecer o pai da minha amiga e, quando consigo, introduzo-o a meu
então escritório, na parte inferior da casa. Ofereço-lhe toalha para secar o
que fosse possível e pergunto o que posso fazer por ele, em hora tão tardia,
debaixo daquele aguaceiro. Depois de alguns momentos de indescritível constrangimento, ele diz a que veio: precisa
de urgente e eficaz medida judicial para compelir a esposa a cumprir o “debitum conjugale” que, a juízo dele,
devia ser cumprido, pelo menos, uma vez ao dia. Tomado por indisfarçável
inveja, sugeri-lhe que esquecesse a via judicial, sempre lenta e ineficaz, e procurasse o caminho da sedução, talvez
rosas brancas, para o amor comedido, ou vermelhas, para o amor ardente.
Vermelhas, resolveu ele, mas onde encontrá-las, já, naquela noite, que o ardor
não podia esperar? Lembrei-me das floriculturas do Largo do Arouche, que, à
época, atravessavam a madrugada. Coloquei-o no carro e o levei até lá. Depois,
flores colhidas, deixei-o à porta de seu prédio, desejando-lhe boa-sorte.
Aventura esquecida, na segunda feira seguinte, estava eu debruçado sobre a
habitual monotonia, quando, de surpresa, recebo a visita de meu herói. Traz-me
uma garrafa de vinho e sorriso aberto, como a me dizer que a amada “se abriu”, diante das rosas.
Quando ele morreu, ela, finalmente, descansou, em paz. Tempos
depois, também morreu ela, de saudade, talvez.
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