No meu tempo de faculdade, cerca de 100 alunos na sala, havia
a “turma do fundão”. Longe do alcance
das vistas do professor, seus integrantes jogavam baralho ou dadinhos, lia
jornal, enfim, da aula mesmo, não queriam nem saber. Eram eles que soltavam piadas,
quebrando a monotonia da exposição monocardia do mestre. Apenas não ousavam com
José Frederico Marques, professor de
indiscutível mau humor e que nos tratava como se fôssemos alunos do curso
primário. Lembro-me, no entanto de “armação”
que o fundão fez com o querido Washington de Barros Monteiro, que, por 04 anos
consecutivos, foi nosso professor de Direito Civil e, de tão querido e
admirado, tornou-se nosso paraninfo. Ei-lo, na parede do lado, entregando-me o
diploma, angelical sorriso nos lábios. Mestre Washington tinha o hábito – que
se tornou folclórico – de cortar a palavra pela metade, dando a aula por
encerrada, ao primeiro toque do sinal. Eis que a turma do fundão, acostumada
com tal rotina, colocou, sob o estrado, onde ficava a mesa do professor, um
desses despertadores estridentes que soavam, 15 minutos antes da aula terminar. Ou
mestre Washington não percebeu a trapaça, ou fingiu não percebê-la. O certo é
que, durante largo tempo, as aulas de Direito Civil duraram 15 minutos a menos.
Faço esta viagem, no tempo, ao constatar que o Supremo(?)Tribunal Federal,
mesmo em ovalada disposição geográfica, tem sua “turma do fundão”, aqueles posudos fanfarrões, que brincam de
cumprir e fazer cumprir a Constituição Federal. Explico: Em nossa Carta Magna
estão esculpidos, no capítulo I do título II “os direitos individuais e coletivos, especificados em 72 incisos do
art. 5º e que são as chamadas “cláusulas pétreas””, aquelas que, em nenhuma hipótese e sob
qualquer pretexto, podem ser suprimidas ou modificadas. Nas palavras do insigne
jurista Celso Ribeiro Bastos: “é um rol
de direitos que consagra a limitação da atuação estatal em face de todos
aqueles que entrem em contato com esta mesma ordem jurídica”. Pois não é
que viajo a dois incisos do mencionado artigo 5º e, lá, leio o seguinte texto:
“ XXXIX – Não há crime sem lei anterior
que a defina, nem pena sem prévia cominação legal”. E o subsequente inciso
XL, de forma peremptória, estabelece que “a
lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.
Mostro os dois textos constitucionais a Rodolfo, meu
politizado pastor alemão, e peço sua interpretação. Ele, que teve ancestral,
prestando serviços a Liebman, olhou-me, com indisfarçável surpresa:- “ou você está louco ou ficou esclerosado, uma
vez que os textos são tão óbvios, que não comportam interpretação: o primeiro,
estabelece que sem lei anterior, que
defina o ato como sendo Ilícito penal, não há que se falar em crime, ou fato
típico: o segundo afirma que a lei nova, isto é, a que acabou de ser editada,
somente pode retroagir, palavra que significa “recuar”, ou, literalmente, “agir
para trás”, em benefício do réu”. Confesso que fiquei orgulhoso do
raciocínio lógico-jurídico de Rodolfo, que anda lendo edições pretéritas de
Direito Penal e a desusada coletânea da “Revista
dos Tribunais”. Todavia, como ele insistisse em saber a razão de meu
questionamento, fui obrigado a informar-lhe que, na última quarta-feira, o
Supremo (?) Tribunal Federal, por maioria de votos (6x5) decidiu que a “lei da ficha limpa”, editada em 2010,
pode retroagir para alcançar fatos e políticos, envolvidos em malversação de
dinheiro público, antes de sua edição. Isto é, produziu efeito retroativo.
Rodolfo rosnou, derrubou o vasilhame de água e, ira contida, indagou-me de que
ignaras cabeças saíra tão estapafúrdia decisão, a apagar clausulas irremovíveis
de nossa Carta Constitucional. Eu, que não estou na idade de me transformar em
querelado, em queixa-crime, limitei-me a recontar-lhe a história da “turma do fundão”, que a tem, até nosso “Pretório Excelsior” (omito que ele rolou de rir, ao ouvir tal
expressão). Todavia, com aquela inflexibilidade, própria da raça, quis ele
saber o que eu achava de tão patética decisão. Explique-lhe que toda “turma do fundão” é descontraída,
inconsequente, joga para a plateia, que os aplaude, apesar de não se misturar
com ela. A decisão, objeto de nosso diálogo, consolida a pior forma de ditadura
– expliquei-lhe – porque camuflada de legalidade. E lhe dei o seguinte exemplo:
“imaginemos que, amanhã, surja uma lei,
proibindo “ter, guardar consigo ou, a qualquer pretexto, utilizar, pastor
alemão”. E, como pena, fixa-se “eliminação
do cão e prisão do infrator”. Dentro da nova hermeneutica do Supremo, nós, que já nos temos já lá vão 05 anos, estamos
ferrados: você vai virar sabão e eu conduzido a prisão de segurança máxima. Em
resumo, meu caro, esta coisa volátil, chamada “segurança jurídica” volatizou-se,
de vez.
Rodolfo encaminhou-se, alquebrado, para seu canto. A meio do
caminho, parou, voltou-se para mim e perguntou: “mas, “sua” Ordem dos Advogados, não vai se insurgir contra tal a excrescência
jurídica?” Não respondi, matutando se deveria ligar para meu queridíssimo
colega e amigo, a quem denomino o “Catão”
da advocacia paulista e repetir a pergunta do Rodolfo. Arrepiei carreira, ao
imaginar o constrangimento do ilustre causídico. Temi, acima de tudo, que tal
constrangimento o fizesse abandonar a seleção dos notáveis, para se dedicar,
exclusivamente, a sua esplendorosa coleção de selos.
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