sexta-feira, 6 de outubro de 2017

O Supremo e a “turma do fundão”



No meu tempo de faculdade, cerca de 100 alunos na sala, havia a “turma do fundão”. Longe do alcance das vistas do professor, seus integrantes jogavam baralho ou dadinhos, lia jornal, enfim, da aula mesmo, não queriam nem saber. Eram eles que soltavam piadas, quebrando a monotonia da exposição monocardia do mestre. Apenas não ousavam com  José Frederico Marques, professor de indiscutível mau humor e que nos tratava como se fôssemos alunos do curso primário. Lembro-me, no entanto de “armação” que o fundão fez com o querido Washington de Barros Monteiro, que, por 04 anos consecutivos, foi nosso professor de Direito Civil e, de tão querido e admirado, tornou-se nosso paraninfo. Ei-lo, na parede do lado, entregando-me o diploma, angelical sorriso nos lábios. Mestre Washington tinha o hábito – que se tornou folclórico – de cortar a palavra pela metade, dando a aula por encerrada, ao primeiro toque do sinal. Eis que a turma do fundão, acostumada com tal rotina, colocou, sob o estrado, onde ficava a mesa do professor, um desses despertadores estridentes  que  soavam, 15 minutos antes da aula terminar. Ou mestre Washington não percebeu a trapaça, ou fingiu não percebê-la. O certo é que, durante largo tempo, as aulas de Direito Civil duraram 15 minutos a menos. Faço esta viagem, no tempo, ao constatar que o Supremo(?)Tribunal Federal, mesmo em ovalada disposição geográfica, tem sua “turma do fundão”, aqueles posudos fanfarrões, que brincam de cumprir e fazer cumprir a Constituição Federal. Explico: Em nossa Carta Magna estão esculpidos, no capítulo I do título II “os direitos individuais e coletivos, especificados em 72 incisos do art. 5º e que são as chamadas “cláusulas pétreas””,  aquelas que, em nenhuma hipótese e sob qualquer pretexto, podem ser suprimidas ou modificadas. Nas palavras do insigne jurista Celso Ribeiro Bastos: “é um rol de direitos que consagra a limitação da atuação estatal em face de todos aqueles que entrem em contato com esta mesma ordem jurídica”. Pois não é que viajo a dois incisos do mencionado artigo 5º e, lá, leio o seguinte texto: “ XXXIX – Não há crime sem lei anterior que a defina, nem pena sem prévia cominação legal”. E o subsequente inciso XL, de forma peremptória, estabelece que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.
Mostro os dois textos constitucionais a Rodolfo, meu politizado pastor alemão, e peço sua interpretação. Ele, que teve ancestral, prestando serviços a Liebman, olhou-me, com indisfarçável surpresa:- “ou você está louco ou ficou esclerosado, uma vez que os textos são tão óbvios, que não comportam interpretação: o primeiro, estabelece que  sem lei anterior, que defina o ato como sendo Ilícito penal, não há que se falar em crime, ou fato típico: o segundo afirma que a lei nova, isto é, a que acabou de ser editada, somente pode retroagir, palavra que significa “recuar”, ou, literalmente, “agir para trás”, em benefício do réu”. Confesso que fiquei orgulhoso do raciocínio lógico-jurídico de Rodolfo, que anda lendo edições pretéritas de Direito Penal e a desusada coletânea da “Revista dos Tribunais”. Todavia, como ele insistisse em saber a razão de meu questionamento, fui obrigado a informar-lhe que, na última quarta-feira, o Supremo (?) Tribunal Federal, por maioria de votos (6x5) decidiu que a “lei da ficha limpa”, editada em 2010, pode retroagir para alcançar fatos e políticos, envolvidos em malversação de dinheiro público, antes de sua edição. Isto é, produziu efeito retroativo. Rodolfo rosnou, derrubou o vasilhame de água e, ira contida, indagou-me de que ignaras cabeças saíra tão estapafúrdia decisão, a apagar clausulas irremovíveis de nossa Carta Constitucional. Eu, que não estou na idade de me transformar em querelado, em queixa-crime, limitei-me a recontar-lhe  a história da “turma do fundão”, que a tem, até nosso “Pretório Excelsior” (omito que ele rolou de rir, ao ouvir tal expressão). Todavia, com aquela inflexibilidade, própria da raça, quis ele saber o que eu achava de tão patética decisão. Explique-lhe que toda “turma do fundão” é descontraída, inconsequente, joga para a plateia, que os aplaude, apesar de não se misturar com ela. A decisão, objeto de nosso diálogo, consolida a pior forma de ditadura – expliquei-lhe – porque camuflada de legalidade. E lhe dei o seguinte exemplo: “imaginemos que, amanhã, surja uma lei, proibindo “ter, guardar consigo ou, a qualquer pretexto, utilizar, pastor alemão”. E, como pena, fixa-se “eliminação do cão e prisão do infrator”. Dentro da nova hermeneutica do Supremo, nós,  que já nos temos já lá vão 05 anos, estamos ferrados: você vai virar sabão e eu conduzido a prisão de segurança máxima. Em resumo, meu caro, esta coisa volátil, chamada “segurança jurídica” volatizou-se, de vez.
Rodolfo encaminhou-se, alquebrado, para seu canto. A meio do caminho, parou, voltou-se para mim e perguntou: “mas, “sua” Ordem dos Advogados, não vai se insurgir contra tal a excrescência jurídica?” Não respondi, matutando se deveria ligar para meu queridíssimo colega e amigo, a quem denomino o “Catão” da advocacia paulista e repetir a pergunta do Rodolfo. Arrepiei carreira, ao imaginar o constrangimento do ilustre causídico. Temi, acima de tudo, que tal constrangimento o fizesse abandonar a seleção dos notáveis, para se dedicar, exclusivamente, a sua esplendorosa coleção de selos.


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