sexta-feira, 28 de setembro de 2012


PRIMAVERA

Nem mesmo foi preciso abrir os olhos para saber que era tempo de primavera. O estridente gorjear do sabiá e o adocicado cheiro de alecrim invadiram o quarto, anunciando que o inverno se fora, levando consigo a tristeza dos frios dias cinzentos e das mulheres, coxas escondidas por calças compridas e botas até o joelho. Sempre detestara o inverno, a não ser quando fazia amor com V., ela, lindíssima, completamente nua, calçando apenas longas botas e desfilando para ele, com aquele sorriso exagerado, que nunca mais esqueceu. A primavera, além de festa multicolorida, era o preâmbulo do verão, essa sim, sua estação do ano preferida, a exuberância das mulheres douradas, a exibirem seus corpos pouco vestidos. Por isso, naquela manhã, seguindo o canto dos pássaros e o perfume das flores, acordou cantarolando, aprontando-se, com esmero, até exagerado, para mais um simples dia de trabalho. Olhou-se no espelho e não pode conter uma ponta de vaidade: apesar de já ter chegado aos 50 – odiava falar de sua idade – ainda se considerava um homem atraente, apesar de alguns quilos acumulados nos últimos anos. O casamento desfeito, depois de mais de 25 anos de boa convivência com Maria Clara, deixara um certo desencanto com as mulheres, o que serviu para firmar sua convicção de permanecer sozinho, apesar de, pela sua cama, ter passado dezenas delas, sem preconceito de cor ou de raça.
Depois de cumprimentar o porteiro, com a gozação de sempre – “o Flamengo vai acabar, seu Antonio” – apanhou seu carro e seguiu em direção ao escritório, na Praia do Flamengo. Como a manhã surgira esplendorosa, preferiu margear a praia, até entrar na Princesa Izabel. O trânsito, como sempre, era intenso, mas “Chopin”, deslizando, suave, no som e a vista deslumbrante do mar, salpicado de barcos, tornavam o trajeto agradável passeio. O dia transcorrera sem pressa e sobressaltos e o esmorecer do sol, anunciou que era hora do tradicional uísque “boca de noite”, no elegante bar do Hotel Glória. Fora o primeiro a chegar. Sentou-se, como fazia, já lá iam cinco anos, na mesma mesa de sempre, foi atendido pelo garçom de sempre e tomava o Buchanna’s de sempre, quando seus olhos pararam em duas coxas, absolutamente perfeitas, cruzadas à sua frente. Vagarosamente, como quem desfruta prazer raro – e desfrutava – subiu os olhos, até encontrar a dona daquele monumento de pernas: loura, olhos azuis, quase um metro e oitenta, a descontar a altura do salto, por volta de 35 anos, vestido azul escuro, exibindo, além das citadas coxas, a entrada de seios rígidos, cujos bicos apontavam para o norte. Frequentador assíduo, sabia que o bar não admitia prostitutas à caça de clientes. Além do mais, a elegância espontânea, com que levava a taça aos lábios, demonstrava que se tratava de mulher de fino trato. Não soube por quanto tempo ficou em tais divagações, contemplando aquele conjunto harmonioso e, tão absorvido estava, que se assustou quando, daquela boca, recebeu um sorriso suave e encorajador. Empunhou seu corpo e, como quem se dirige a lugar sagrado, caminhou até a mesa da mulher e sentou-se a seu lado. Sabia que, como quem mergulha em mar revolto, estava correndo um grande perigo, mas, como dizia Pessoa, “navegar é preciso, viver não é preciso”. Falaram de coisas e de lugares. Ela viera de Curitiba, para um congresso - era consultora de economia – e, sem conhecer ninguém no Rio, preparava-se para jantar, ali mesmo no Hotel e, depois iria subir para o quarto. Ele, aproveitando a deixa, convidou-a para conhecer a noite do Rio. A princípio ela vacilou, mas ele sabia manipular situações: o “não” vacilante é vizinho do “sim”, era como funcionava a cabeça das mulheres. Em lugar de um formal restaurante de hotel, propôs um, na Lagoa, onde, inclusive, poderiam ouvir boa música. A noite estrelada e a lua desmaiando sobre o mar formavam o cenário perfeito para aquele inesperado encontro. Primeiro, levou-a ao “Vinicius”, seu reduto, onde, Bira, ao piano, recepcionou-o com o hino do Botafogo, seguido das melhores canções do poetinha. Saltava aos olhos que ela estava impressionada:
- “Você deve ser o maior boêmio da cidade” – disse-lhe ela.
- “Não, apenas sou fiel ao lugar que frequento, como sou fiel às pessoas, com quem convivo” – respondeu ele.
Com certeza, tocou em ferida não cicatrizada, pois, sem intervalo, ela começou a falar de um grande amor, perdido pela traição. Sentindo que a conversa poderia descambar para a tristeza, ele pediu a conta e seguiram para o “Mistura Fina”, já borbulhando de gente. O conjunto de Fred tocava “Moonlight Serenade”, que Fernanda cantava divinamente. Alguns velhos conhecidos cumprimentaram-se com um aceno de mão e Beth, a “promoter” da casa, levou-os até uma mesa, onde podiam conversar, sem suas vozes sempre abafadas pela música. A beleza da casa, a alegria das pessoas, Sinatra no ar, devolveu-a à satisfação de estar no Rio, na magia do Rio. Aquela era a cidade, que sonhara conhecer e, tinha de admitir, aquele era o homem certo: bonito, elegante, educado e que sabia tratar as mulheres. Beberam, conversaram, riram muito e ele, além de tomar-lhe as mãos, nem por um segundo, falou-lhe em sexo.
- “Você deve estar cansada, quando quiser, podemos ir, porque, por mim, amanheço o dia com você” – disse-lhe ele.
Ela sorriu, pensando no duplo sentido de “amanheço o dia”. Por que não? Desde seu rompimento amoroso, quase um ano passado, não ficara com ninguém e, nos últimos tempos, acordava, no meio da noite, suando, com o corpo em brasa. Bem sabia porque e aquele ambiente, o vinho, a música acenderam uma fogueira dentro dela. Ele, como se lesse seus pensamentos, puxou-a junto a si e beijou-a, intensa, mas suavemente, enquanto, como quem percorre joia rara, deslizou sua mão esquerda sobre as coxas, até alcançar a calcinha, que sentiu umedecida. Como em ritual, pagou a conta, tomou-a pela mão e, como quem transporta louça frágil, levou-a para o carro, dirigindo com o seu braço esquerdo, envolvendo-a com o outro, ela aconchegada a seu ombro, beijando-lhe, com a ponta dos lábios o pescoço.
Quando acordou, depois de frenética noite de amor, ela se fora, deixando apenas um bilhete saudoso, mas sem telefone. Se quisesse, poderia localizá-la pelo Hotel, mas preferiu imaginar que vivera um sonho, sonho de noite de primavera. 

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