segunda-feira, 20 de agosto de 2012

A princípio, a cena podia ser considerada bizarra. Lá estava o homem, sentado na primeira fila da sala de julgamento do Tribunal. De onde eu estava, via-o apenas de lado, com seu surrado terno preto, brilhando de tanto usar e sua poída camisa amarelada, que, um dia, provavelmente fora branca. Olhava, fixa e atentamente para os Desembargadores, a indicar que aguardava o julgamento do seu processo. Sem dúvida que aquele homem, simples, quase roto, no vestir, destoava do ambiente austero da Corte, Juízes com suas togas pretas e advogados, impecavelmente vestidos. Suspensa a sessão, para um lanche dos Magistrados, não resisti à tentação de me sentar ao lado daquele estranho homem. Cumprimentei-o quase sussurrando e ele, vivendo de sua parca aposentadoria, devolveu-me o cumprimento com um contido sorriso. Sua estreita gravata alcançava metade do peito e devia ter a idade do resto da roupa. Perguntei se seu processo seria julgado e ele, repousando a mão sobre a minha, que descansava no espaldar da cadeira, respondeu-me que não tinha nenhum processo a ser julgado, era aposentado, viúvo, os filhos casados e distantes. Como não suportava ficar em casa, sozinho, vinha todos os dias assistir às sessões do Tribunal, entrando na sala que tivesse mais movimento. Quando os julgamentos terminaram, convidei-o para um café e ele, com indisfarçável satisfação, aceitou. Procurei uma mesa de canto, na lanchonete da Conde do Pinhal, que habitualmente freqüento e lá nos instalamos. Contou-me um pouco de sua vida: 85 anos, funcionário público aposentado da vizinha Secretaria da Justiça, sonhara, em jovem, ser advogado, defendendo grandes causas no Tribunal do Júri. Salário medíocre, família constituída cedo, o sonho foi sendo adiado, até ser sepultado de vez. Os filhos – dois casaram-se, mudando para o interior, visitando-o raramente. A mulher, a única que tivera por toda a vida, morrera, já lá iam quase 30 anos, vítima de um câncer fulminante. Pensara em se matar, mas havia os filhos a acabar de criar. Em resumo: sem mulher, filhos distantes, ficou só, vivendo de parca aposentadoria. Morava ali ao lado, na Tabatinguera, quarto alugado. Quando o Tribunal do Júri era no Palácio da Justiça, não perdia os julgamentos. Conhecia de nome (e até citou alguns) os principais advogados e promotores da época. Depois que o Júri se transferiu, primeiro para a Vila Mariana e depois para a Barra Funda, não mais lá foi: a distância era muita e o júri perdera a majestade (com o que eu, quase tão velho e saudosista quanto ele, concordei). Passou, então, a freqüentar as sessões do Tribunal que, ao contrário do Júri, funcionava todos os dias, pela manhã e pela tarde. Conhecia termos e até teses jurídicas, o que faria inveja a muitos advogados recém formados. Como a noites já anunciava sua presença, saímos, cada qual em sua direção. Só então me dei conta que não lhe perguntara seu nome, nem ele o meu. Não sei por que, mas me lembrei de um verso de um poeta de minha juventude: “Chorei, choraste! Tinhas a alma de sonho povoada e a alma de sonhos povoada eu tinha...

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