quinta-feira, 25 de outubro de 2012


A Fuga Definitiva

Aquela não era apenas sua casa de campo, construída em um promontório, que se debruçava sobre uma pequena floresta, serpenteada por tímido rio. Era, na verdade, seu refúgio, onde vinha pensar suas feridas emocionais e elaborar seus projetos. Gostava de, sozinho, caminhar por entre as trilhas, escutando o gorjear dos pássaros e os galhos, caídos das árvores, estalarem sob seus pés. Andava sem rumo e, muitas vezes, perdera-se nestas andanças, sem medo, ao contrário, sentindo um prazer quase infantil, na descoberta do caminho de volta. Foi assim naquele dia. Na noite anterior tivera, por motivo pueril, desagradável e inútil discussão com sua mulher. Depois de tantos anos de casado, era assim. Filhos criados e afastados do ninho, ainda não tinham desvendados os segredos da solidão a dois, daí o enfretamento habitual, sobre coisas sem importância: a toalha jogada no chão; a mesa do café sem guardanapo; a televisão em volume alto etc. Mas, mesmo essas brigas sem motivo, desgastava-o, provocando noites mal dormidas, como a anterior. Chegara ao escritório, sentindo que seria um dia de problemas: apenas um elevador funcionava, o que o fez ser grosseiro com o porteiro, como fosse ele responsável pelo transtorno. Depois de eternos minutos de espera, chegou a seu andar e, ao abrir a porta, constatou que sua secretária ainda não chegara e o telefone tocava, de forma alucinada. Por certo, aquele não seria um bom dia! Foi pensando nessa possibilidade, quase certeza, que tomou a decisão de fugir para a casa de campo, cancelando todos os compromissos e só retornando quando a noite já estivesse definitivamente instalada. Duas horas depois, de tênis, bermuda e camiseta, estava sentado na espreguiçadeira, instalada no deque, de onde só se via o verde. E o único barulho era o do vento soprando a copa das árvores. Como a região possuía inúmeros pântanos, podia-se, ao longe, ouvir o coaxar dos sapos. Folheou, pela centésima vez as “Ficções do Interlúdio”, de Fernando Pessoa, ligou para a secretária: fora chamado, com urgência, a Brasília e só retornaria à noite, que avisasse em sua casa. Ligou o som, enquanto procurava alguma coisa para comer. Queijo e salame, aparentemente em bom estado e algumas garrafas de cerveja. Sobras do último fim de semana, que lá estivera. Sentia que começava a se desligar de seu cotidiano monótono, que ia o asfixiando, lentamente. Perdera o entusiasmo pelo trabalho e sua mulher, companheira de uma vida inteira, olhava-o com indiferença. Sem ódio, mas sem carinho. Provavelmente algum ressentimento armazenado. Os filhos, casados e distantes, habitavam seus próprios mundos, onde ele, por certo, não cabia. Lentamente, seus olhos foram ficando pesados e ele dormiu, embalado pela brisa, que, sem pedir licença, invadira a sala. Acordou, assustado, com um grito, vindo da varanda. Eram os sagüis, principais habitantes da região, que invadiam as casas, em busca de comida. Fechou as portas e saiu para sua habitual caminhada, sem rumo, blindando seus pensamentos contra o mundo, além daquele mínimo universo. Andava, vagarosamente, percorrendo alamedas naturais, sentindo o perfume das flores e identificando o canto dos pássaros. De repente, ao circundar o que imaginou ser um pequeno pântano, constatou, com indizível terror, que estava preso ao mais terrível dos meios, aquele em que o homem não pode mais caminhar, assim como o peixe não pode nadar. Estava prisioneiro da areia movediça. Em movimento rápido, tenta voltar à terra firme, o que o faz afundar mais um pouco. Em movimentos frenéticos de braços e pernas, busca a margem, que parece se distanciar, apesar de estar a pouco mais de um metro. Inútil! Agora, a areia cobre-lhe os joelhos. Agitando os braços, começa a gritar, primeiro em voz baixa (sempre fora avesso a gritos), depois, histericamente. Sua voz ecoa no vazio. Àquela hora, meio de semana, vizinhos distantes, ninguém atenderá a seus pedidos de socorro. A areia atingi-lhe a cintura. Ao longe, as primeiras luzes, a prenunciarem a noite, acendem-se e a mata, subitamente, mergulha na escuridão. A areia cobre-lhe os ombros. Agora, ele sabe que nada resta a fazer, senão esperar o fim, que vai se aproximando vagarosamente, com a
areia, gosto ardido, chegando-lhe à boca. Só, então, toma consciência que ninguém dará conta de sua morte e talvez seu corpo jamais será descoberto. Será um desaparecido, cujo rumo se perdeu em direção a um lugar desconhecido. O que dele pensarão a mulher, os filhos, os amigos, os clientes? Inútil pensar, porque a areia cobriu-lhe o nariz, deixando-lhe fugaz tempo de ver as luzes acesas, ao longe.

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